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A história da loucura na idade clássica

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espaço do inter<strong>na</strong>mento, a época <strong>clássica</strong> acabava de encontrar ao<br />

mesmo tempo uma pátria e um lugar de redenção comuns aos<br />

pecados contra a carne e às faltas contra a razão. A <strong>loucura</strong> começa a<br />

avizinhar-se com o pecado, e é talvez aí que se estabelecerá, por<br />

séculos, esse parentesco entre o desatino e a culpabili<strong>da</strong>de que o<br />

alie<strong>na</strong>do experimenta hoje, como sendo um destino, e que o médico<br />

descobre como ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza. Nesse espaço factício criado<br />

inteiramente em pleno século XVII constituíram-se alianças obscuras<br />

que cento e tantos anos de psiquiatria dita "positiva" não<br />

conseguiram romper, alianças que se estabeleceram pela primeira<br />

vez, bem recentemente, <strong>na</strong> época do racio<strong>na</strong>lismo.<br />

É estranho que tenha sido justamente o racio<strong>na</strong>lismo quem<br />

autorizou essa confusão entre o castigo e o remédio, esta quase-<br />

identi<strong>da</strong>de entre o gesto que pune e o gesto que cura. Ele supõe um<br />

certo tratamento que, <strong>na</strong> articulação precisa entre a medici<strong>na</strong> e a<br />

moral, será ao mesmo tempo uma antecipação sobre os castigos<br />

eternos e um esforço <strong>na</strong> direção do restabelecimento <strong>da</strong> saúde. O que<br />

se procura no fundo é a artimanha <strong>da</strong> razão médica que faz o bem ao<br />

fazer o mal. E é esta busca que sem dúvi<strong>da</strong> se deve ver nesta frase<br />

que São Vicente de Paula mandou inscrever à frente dos<br />

regulamentos de Saint-Lazare, ao mesmo tempo uma promessa e<br />

uma ameaça para todos os prisioneiros: "Considerando que seus<br />

sofrimentos temporais não os eximirão dos sofrimentos eternos... ";<br />

segue-se todo o sistema religioso de controle e repressão que, ao<br />

inscrever os sofrimentos temporais nessa ordem <strong>da</strong> penitência<br />

sempre reversível em termos de eterni<strong>da</strong>de, pode e deve eximir o<br />

pecador dos s ofrimentos eternos. A coação huma<strong>na</strong> aju<strong>da</strong> a justiça<br />

divi<strong>na</strong> ao esforçar-se por torná-la inútil. A repressão adquire assim<br />

uma dupla eficácia, <strong>na</strong> cura dos corpos e <strong>na</strong> purificação <strong>da</strong>s almas. O<br />

inter<strong>na</strong>mento tor<strong>na</strong> possível esses famosos remédios morais —<br />

castigos e terapêuticas — que serão a ativi<strong>da</strong>de principal dos<br />

primeiros asilos do século XIX e cuja fórmula Pinel <strong>da</strong>rá antes de<br />

Leuret, ao assegurar que às vezes é bom "abalar fortemente a<br />

imagi<strong>na</strong>ção de um alie<strong>na</strong>do e imprimir-lhe um sentimento de<br />

terror" 14 .<br />

O tema de um parentesco entre medici<strong>na</strong> e moral é sem dúvi<strong>da</strong><br />

tão velho quanto a medici<strong>na</strong> grega. Mas se o século XVII e a ordem<br />

14 PINEL, Traité médico-philosophique, p. 207.<br />

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