15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Este amor que a sabedoria <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza não mais limita está<br />

inteiramente entregue a seus próprios excessos; é como a raiva de<br />

um coração vazio, o jogo absoluto de uma paixão sem objeto; todo o<br />

seu apego é indiferente à ver<strong>da</strong>de do objeto amado, tanto se entrega<br />

ele aos movimentos ape<strong>na</strong>s de sua imagi<strong>na</strong>ção. “Ele vive<br />

principalmente no coração, ciumento e furioso como ele”. Esta raiva<br />

absorta em si mesma é ao mesmo tempo o amor numa espécie de<br />

ver<strong>da</strong>de despoja<strong>da</strong> e a <strong>loucura</strong> <strong>na</strong> solidão de suas ilusões. Chega um<br />

momento em que a paixão se alie<strong>na</strong> à custa de ser demasia<strong>da</strong><br />

conforme com sua ver<strong>da</strong>de mecânica, e tanto que, ape<strong>na</strong>s com o<br />

impulso de seu movimento, tor<strong>na</strong>-se delírio. E, por conseguinte,<br />

remetendo-se um gesto de violência à violência <strong>da</strong> paixão, isolando<br />

sua ver<strong>da</strong>de psicológica em estado puro, situa-se num mundo de<br />

cegueira, de ilusão e <strong>loucura</strong> que se esquiva à sua reali<strong>da</strong>de crimi<strong>na</strong>l.<br />

Aquilo que Bellart desven<strong>da</strong>va pela primeira vez em sua defesa é<br />

esse relacio<strong>na</strong>mento, para nós fun<strong>da</strong>mental, que estabelece em todo<br />

gesto humano uma proporção inversa entre sua ver<strong>da</strong>de e sua<br />

reali<strong>da</strong>de. A ver<strong>da</strong>de de um comportamento não pode deixar de<br />

irrealizá-lo; ela tende obscuramente a propor-lhe, como forma última<br />

e não a<strong>na</strong>lisável <strong>da</strong>quilo que ela é em segredo, a <strong>loucura</strong>. Do ato<br />

assassino de Gras resta enfim um gesto vazio, executado "por uma<br />

mão que é a única culpa<strong>da</strong>" e, por outro lado, "uma fatali<strong>da</strong>de infeliz"<br />

que se deu "<strong>na</strong> ausência <strong>da</strong> razão e no tormento de uma paixão<br />

irresistível" 50 . Se se liberta o homem de todos os mitos morais onde<br />

sua ver<strong>da</strong>de estava aprisio<strong>na</strong><strong>da</strong>, percebe-se que a ver<strong>da</strong>de dessa<br />

ver<strong>da</strong>de desalie<strong>na</strong><strong>da</strong> é ape<strong>na</strong>s a própria alie<strong>na</strong>ção.<br />

O modo pelo qual doravante será entendi<strong>da</strong> "a ver<strong>da</strong>de<br />

psicológica do homem" retoma assim as funções e o sentido com os<br />

quais o desatino havia sido encarado durante tanto tempo; e o<br />

homem descobre, no fundo de si mesmo, no ponto extremo de sua<br />

solidão, num ponto nunca atingido pela felici<strong>da</strong>de, pela<br />

verossimilhança nem pela moral, os velhos poderes que a era <strong>clássica</strong><br />

havia conjurado e exilado para as fronteiras mais distantes <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. O desatino é objetivado à força, <strong>na</strong>quilo que ele tem de<br />

mais subjetivo, de mais interior, de mais profundo no homem. O<br />

desatino, que durante tanto tempo havia sido manifestação culposa,<br />

toma-se agora inocência e segredo. Ele, que havia exaltado essas<br />

formas do erro <strong>na</strong>s quais o homem abole a ver<strong>da</strong>de, tor<strong>na</strong>-se com<br />

50 Ibid., pp. 76-77.<br />

496

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!