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A história da loucura na idade clássica

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<strong>loucura</strong> em sua arrogância mais do que em sua aberração. O espírito<br />

clássico conde<strong>na</strong>va <strong>na</strong> <strong>loucura</strong> uma certa cegueira para a ver<strong>da</strong>de; a<br />

partir de Pinel, ver-se-á nela antes um élan oriundo <strong>da</strong>s profundezas,<br />

que ultrapassa os limites jurídicos do indivíduo, ignora os marcos<br />

morais que lhe são fixados e que tende para uma apoteose de si<br />

mesmo. Para o século XIX, o modelo inicial <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> será acreditarse<br />

Deus, enquanto para os séculos anteriores era recusar Deus.<br />

Portanto, é no espetáculo de si mesma, como desatino humilhado,<br />

que a <strong>loucura</strong> poderá encontrar sua salvação, quando, captura<strong>da</strong> <strong>na</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong>de absoluta de seu delírio, ela surpreenderá a imagem<br />

irrisória e objetiva no louco idêntico. A Ver<strong>da</strong>de se insinua, como de<br />

surpresa (e não através <strong>da</strong> violência, à maneira do século XVIII),<br />

nesse jogo de olhares recíprocos em que ela nunca vê <strong>na</strong><strong>da</strong> além de<br />

si mesma. Mas o asilo, nessa comuni<strong>da</strong>de de loucos, dispôs os<br />

espelhos de tal modo que o louco não pode deixar, afi<strong>na</strong>l, de<br />

surpreender-se como louco, ain<strong>da</strong> que contra a vontade. Liberta<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s correntes que dela faziam um puro objeto olhado, a <strong>loucura</strong><br />

perde, de maneira paradoxal, o essencial de sua liber<strong>da</strong>de, que é a<br />

liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> exaltação solitária; ela se tor<strong>na</strong> responsável por aquilo<br />

que ela sabe sobre sua ver<strong>da</strong>de, aprisio<strong>na</strong>-se em seu olhar<br />

indefini<strong>da</strong>mente remetido a si mesma. É fi<strong>na</strong>lmente acorrenta<strong>da</strong> à<br />

humilhação de ser objeto para si própria. A toma<strong>da</strong> de consciência<br />

está liga<strong>da</strong> agora à vergonha de ser idêntica a esse outro, de estar<br />

comprometi<strong>da</strong> nele e de já ser despreza<strong>da</strong> antes de ter podido<br />

reconhecer-se e conhecer-se.<br />

3. O julgamento perpétuo. Através desse jogo de espelhos, como<br />

pelo silêncio, a <strong>loucura</strong> é chama<strong>da</strong> incessantemente a julgar a si<br />

mesma. Além do mais, ela é a ca<strong>da</strong> instante julga<strong>da</strong> do exterior, não<br />

ape<strong>na</strong>s por uma consciência moral ou científica, mas por uma espécie<br />

de tribu<strong>na</strong>l invisível permanente. O asilo com que Pinel sonha, e que<br />

em parte realizou em Bicêtre e sobretudo <strong>na</strong> Salpêtrière, é um<br />

microcosmo judiciário. Para ser eficaz, essa justiça deve ser temível<br />

em seu aspecto; todo o equipamento imaginário do juiz e do carrasco<br />

deve estar presente ao espírito do alie<strong>na</strong>do, para que compreen<strong>da</strong><br />

bem a que universo do juízo ele é agora entregue. A ence<strong>na</strong>ção <strong>da</strong><br />

justiça, portanto, fará parte do tratamento. Um dos internos de<br />

Bicêtre tinha um delírio religioso animado por um terror pânico do<br />

Inferno; acreditava que só conseguiria escapar à <strong>da</strong><strong>na</strong>ção eter<strong>na</strong><br />

através de uma abstinência rigorosa. Era preciso que esse temor de<br />

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