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A história da loucura na idade clássica

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orde<strong>na</strong>do que seja esse gesto, não é simples. Ele organiza numa<br />

uni<strong>da</strong>de complexa uma nova sensibili<strong>da</strong>de à miséria e aos deveres <strong>da</strong><br />

assistência, novas formas de reação diante dos problemas<br />

econômicos do desemprego e <strong>da</strong> ociosi<strong>da</strong>de, uma nova ética do<br />

trabalhe e também o sonho de uma ci<strong>da</strong>de onde a obrigação moral se<br />

uniria à lei civil, sob as formas autoritárias <strong>da</strong> coação. Obscuramente,<br />

esses temas estão presentes <strong>na</strong> construção <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des de<br />

inter<strong>na</strong>mento e em sua organização. São eles que dão sentido a esse<br />

ritual e explicam em parte o modo pelo qual a <strong>loucura</strong> é percebi<strong>da</strong> e<br />

vivi<strong>da</strong> pela era <strong>clássica</strong>.<br />

A prática do inter<strong>na</strong>mento desig<strong>na</strong> uma nova reação à miséria,<br />

um novo patético — de modo mais amplo, um outro relacio<strong>na</strong>mento<br />

do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência.<br />

O pobre, o miserável, o homem que não pode responder por sua<br />

própria existência, assumiu no decorrer do século XVI uma figura que<br />

a I<strong>da</strong>de Média não teria reconhecido.<br />

A Re<strong>na</strong>scença despojou a miséria de sua positivi<strong>da</strong>de mística. E<br />

isto através de um duplo movimento do pensamento que retira à<br />

Pobreza seu sentido absoluto e à Cari<strong>da</strong>de o valor que ela obtém<br />

dessa Pobreza socorri<strong>da</strong>. No mundo de Lutero, e sobretudo no de<br />

Calvino, as vontades particulares de Deus — esta "singular bon<strong>da</strong>de<br />

de Deus para com ca<strong>da</strong> um de nós" — não deixam à felici<strong>da</strong>de ou à<br />

infelici<strong>da</strong>de, à riqueza ou à pobreza, à glória ou à miséria o dom de<br />

falar por si mesmas. A miséria não é a Dama humilha<strong>da</strong> que o Esposo<br />

vem tirar <strong>da</strong> lama a fim de elevá-la; ela tem no mundo um lugar que<br />

lhe é próprio — lugar que não testemunha por Deus nem mais nem<br />

menos do que o faz a riqueza. Deus está tão presente, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

sua mão generosa tão próxima <strong>da</strong> abundância quanto <strong>da</strong> miséria,<br />

conforme lhe aprouver "alimentar uma criança abun<strong>da</strong>ntemente ou<br />

escassamente" 43 . A vontade singular de Deus, quando se dirige ao<br />

pobre, não lhe fala <strong>da</strong> glória prometi<strong>da</strong>, mas sim de predesti<strong>na</strong>ção.<br />

Deus não exalta o pobre numa espécie de glorificação inversa: ele o<br />

humilha voluntariamente em sua cólera, em seu ódio — este ódio que<br />

ele tinha contra Esaú antes mesmo de ele <strong>na</strong>scer e em virtude do<br />

qual ele o despojou dos rebanhos que lhe cabiam pela primogenitura.<br />

43 CALVINO, Institution chrétienne, I, Cap. XVI, ed. J. D. Benoit, p. 225.<br />

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