15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

enga<strong>na</strong>m, "suponhamos agora que estejamos adormecidos": a<br />

ver<strong>da</strong>de não se infiltrará em nós durante a noite.<br />

Com a <strong>loucura</strong>, o caso é outro; se esses perigos não<br />

comprometem o desempenho nem o essencial de sua ver<strong>da</strong>de, não é<br />

porque tal coisa, mesmo no pensamento de um louco, não possa ser<br />

falsa, mas sim porque eu, que penso, não posso estar louco. Quando<br />

creio ter um corpo, posso ter a certeza de possuir uma ver<strong>da</strong>de mais<br />

sóli<strong>da</strong> do que aquele que supõe ter um corpo de vidro? Sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

pois "são loucos, e eu não seria menos extravagante se seguisse o<br />

exemplo deles". Não é a permanência de uma ver<strong>da</strong>de que garante o<br />

pensamento contra a <strong>loucura</strong>, assim como ela lhe permitiria desligar-<br />

se de um erro ou emergir de um sonho; é uma impossibili<strong>da</strong>de de ser<br />

louco, essencial não ao objeto do pensamento mas ao sujeito que<br />

pensa. É possível supor que se está sonhando e identificar-se com o<br />

sujeito sonhador a fim de encontrar uma "razão qualquer para<br />

duvi<strong>da</strong>r": a ver<strong>da</strong>de aparece ain<strong>da</strong>, como condição de possibili<strong>da</strong>de<br />

do sonho. Em compensação, não se pode supor, mesmo através do<br />

pensamento, que se é louco, pois a <strong>loucura</strong> é justamente a condição<br />

de impossibili<strong>da</strong>de do pensamento: "Eu não seria menos<br />

extravagante ... " 3<br />

Na economia <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, há um desequilíbrio fun<strong>da</strong>mental entre a<br />

<strong>loucura</strong>, de um lado, e o sonho e o erro, de outro. A situação deles é<br />

diferente com relação à ver<strong>da</strong>de e àquele que a procura; sonhos ou<br />

ilusões são superados <strong>na</strong> própria estrutura <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, mas a <strong>loucura</strong><br />

é excluí<strong>da</strong> pelo sujeito que duvi<strong>da</strong>. Como logo será excluído o fato de<br />

que ele não pensa, que ele não existe. Uma certa decisão foi toma<strong>da</strong>,<br />

a partir dos Essais. Quando Montaigne encontrou-se com Tasso, <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

lhe assegurava que todo pensamento não fosse ensombrado pelo<br />

desatino. E o povo? O "pobre povo abusado por essas <strong>loucura</strong>s"? O<br />

homem de pensamento estará ao abrigo dessas extravagâncias? Ele<br />

também deve ser "no mínimo, objeto de lástima". E que razão<br />

poderia torná-lo juiz <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>?<br />

A razão me mostrou que conde<strong>na</strong>r de modo tão resoluto uma coisa como<br />

falsa e impossível é atribuir-se a vantagem de ter <strong>na</strong> cabeça os limites e os<br />

marcos <strong>da</strong> vontade de Deus e o poder de nossa mãe Natureza, e no entanto<br />

não há <strong>loucura</strong> mais notável no mundo que aquela que consiste em fazer com<br />

que se encaixem <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> de nossa capaci<strong>da</strong>de e suficiência 4 .<br />

3 DESCARTES, op. cit.<br />

4 MONTAIGNE, Essais, Livro I, Cap. XXVI, Garnier, pp. 231-232.<br />

53

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!