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A história da loucura na idade clássica

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o título de La mendicité abolie 65 . O autor distingue entre os bons e os<br />

maus pobres', os de Jesus Cristo e os do Demônio. Uns e outros dão<br />

provas <strong>da</strong> utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s casas de inter<strong>na</strong>mento, os primeiros porque<br />

aceitam com reconhecimento tudo aquilo que a autori<strong>da</strong>de lhes possa<br />

<strong>da</strong>r gratuitamente:<br />

Pacientes, humildes, modestos, satisfeitos com sua condição e com os auxílios<br />

que o Bureau lhes dá, agradecem a Deus;<br />

quanto aos pobres do Demônio, é fato que eles se queixam do<br />

Hospital Geral e <strong>da</strong> coação que ali os mantém:<br />

Inimigos <strong>da</strong> boa ordem, vagabundos, mentirosos, bêbados, impudicos, que<br />

não saberiam ter outra linguagem que não a do Demônio, seu pai,<br />

amaldiçoam mil vezes os instituidores e diretores desse Bureau.<br />

É essa a razão pela qual devem ser privados dessa liber<strong>da</strong>de de<br />

que fazem uso ape<strong>na</strong>s para a glória de Satã. O inter<strong>na</strong>mento se<br />

justifica assim duas vezes, num indissociável equívoco, a título de<br />

benefício e a título de punição. É ao mesmo tempo recompensa e<br />

castigo, conforme o valor moral <strong>da</strong>queles sobre quem é imposto. Até<br />

o fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong> era <strong>clássica</strong>, a prática do inter<strong>na</strong>mento será considera<strong>da</strong><br />

nesse equívoco: ela terá essa estranha convertibili<strong>da</strong>de que a faz<br />

mu<strong>da</strong>r de sentido conforme o mérito <strong>da</strong>queles a quem se aplica. Os<br />

bons pobres fazem dela um gesto de assistência, e obra de<br />

reconforto; os maus — pela única razão de serem maus —<br />

transformam-<strong>na</strong> num empreendimento <strong>da</strong> repressão. A oposição<br />

entre os bons e maus pobres é essencial à estrutura e à significação<br />

do inter<strong>na</strong>mento. O Hospital Geral desig<strong>na</strong>-os como tais e a própria<br />

<strong>loucura</strong> é dividi<strong>da</strong> segundo esta dicotomia que pode entrar assim,<br />

conforme a atitude moral que parece manifestar, ora <strong>na</strong> categoria <strong>da</strong><br />

beneficência, ora <strong>na</strong> <strong>da</strong> repressão 66 . Todo interno é colocado no<br />

campo dessa valoração ética — e muito antes de ser objeto de<br />

conhecimento ou pie<strong>da</strong>de, ele é tratado como sujeito moral.<br />

Mas o miserável só pode ser sujeito moral <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que<br />

deixou de ser, <strong>na</strong> terra, o invisível representante de Deus. Até o fim<br />

do século XVII, essa será ain<strong>da</strong> a maior objeção para as consciências<br />

católicas. Não diz a Escritura: "Aquilo que fizeres ao menor de meus<br />

65 DOM GUEVARRE, La mendicité provenuta, 1693.<br />

66 Na Salpétrière ou em Bicétre, colocam-se os loucos entre os «pobre,bons» (<strong>na</strong><br />

Salpêtrière, ê o conjunto <strong>da</strong> Madeleine) ou entre os «pobres maus>, I.,<br />

Correção ou a Recuperação).<br />

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