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A história da loucura na idade clássica

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perseguindo-a em sua essência mais profun<strong>da</strong>, de delimitá-la em sua<br />

estrutura última, só se descobria, para formulá-la, a própria<br />

linguagem <strong>da</strong> razão desdobra<strong>da</strong> <strong>na</strong> impecável lógica do delírio: e isso<br />

mesmo, que a tor<strong>na</strong>va acessível, esquivava-a como <strong>loucura</strong>. Agora,<br />

pelo contrário, é através <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> que o homem, mesmo em sua<br />

razão, poderá tor<strong>na</strong>r-se ver<strong>da</strong>de concreta e objetiva a seus próprios<br />

olhos. Do homem ao homem ver<strong>da</strong>deiro, o caminho passa pelo<br />

homem louco. Caminho cuja geografia exata nunca será desenha<strong>da</strong><br />

pelo pensamento do século XIX, mas que será continuamente<br />

percorrido de Cabanis a Ribot e Janet. O paradoxo <strong>da</strong> psicologia<br />

"positiva" do século XIX é o de só ter sido possível a partir do<br />

momento <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong>de: psicologia <strong>da</strong> perso<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de por uma<br />

análise do desdobramento; psicologia <strong>da</strong> memória pelas amnésias, <strong>da</strong><br />

linguagem pelas afasias, <strong>da</strong> inteligência pela debili<strong>da</strong>de mental. A<br />

ver<strong>da</strong>de do homem só é dita no momento de seu desaparecimento;<br />

ela só se manifesta quando já se tornou outra coisa que não ela<br />

mesma.<br />

Uma terceira noção, que surgiu, também ela, no começo do<br />

século XIX, encontra aí a origem de sua importância. A idéia de uma<br />

<strong>loucura</strong> localiza<strong>da</strong> num ponto e que só desenvolve seu delírio sobre<br />

um único assunto já estava presente <strong>na</strong> análise <strong>clássica</strong> <strong>da</strong><br />

melancolia 20 : para a medici<strong>na</strong>, essa era uma particulari<strong>da</strong>de do<br />

delírio, não uma contradição. A noção de monomania, em<br />

compensação, é inteiramente construí<strong>da</strong> ao redor do escân<strong>da</strong>lo que<br />

representa um indivíduo que se mostra louco num ponto mas<br />

permanece razoável em todos os outros. Escân<strong>da</strong>lo que o crime dos<br />

monomaníacos multiplicam, bem como o problema <strong>da</strong><br />

responsabili<strong>da</strong>de que lhes deve ser imputa<strong>da</strong>. Um homem, normal<br />

sob todos os outros aspectos, comete de repente um crime de uma<br />

selvageria desmedi<strong>da</strong>; para seu gesto não se pode encontrar nem<br />

causa nem razão. Para explicá-lo não há nem lucro, nem interesse,<br />

nem paixão: uma vez cometido, o criminoso transforma-se no que<br />

era antes 21 . É possível dizer que se trata de um louco? A completa<br />

ausência de determi<strong>na</strong>ções visíveis, o vazio total de razões, permitem<br />

20 Cf. supra, Parte II, Cap. 9.<br />

21 Vários desses casos suscitaram uma imensa literatura médica e jurídica: Léger,<br />

que devorou o coração de uma moça; Papavoine, que estrangulou duas<br />

crianças <strong>na</strong> presença <strong>da</strong> mãe delas, que ele via pela primeira vez <strong>na</strong> vi<strong>da</strong>;<br />

Henriette Cornier, que cortou a cabeça de uma criança que lhe era totalmente<br />

estranha. Na Inglaterra, o caso Bowler; <strong>na</strong> Alemanha, o caso Sievert.<br />

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