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A história da loucura na idade clássica

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perigo de morte consegue conjurar o pitoresco individual, novas<br />

coerências irão lentamente constituir-se, permitindo aos poucos<br />

aquilo que se poderia chamar de percepção asilar <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

Aparecem novas quali<strong>da</strong>des que não mais indicam ape<strong>na</strong>s os perigos,<br />

nem se alinham pela morte. Evidentemente, é muito difícil seguir em<br />

seus desvios o conjunto desse trabalho, só marcado pelas notícias,<br />

sempre muito breves, dos registros de inter<strong>na</strong>mento. Mas até nos<br />

textos parece que a <strong>loucura</strong> começa a falar uma linguagem que não<br />

se refere mais à morte e à vi<strong>da</strong>, mas a si mesma e àquilo que pode<br />

comportar de senso e de não-senso. Ê sem dúvi<strong>da</strong> nessa direção que<br />

se pode compreender a distinção, tão freqüente no ,século XVIII e<br />

para nós tão obscura, entre insensatos e alie<strong>na</strong>dos. Até o começo do<br />

século, os dois conceitos representam, um em relação ao outro, papel<br />

simétrico e inverso: ora os "insensatos" desig<strong>na</strong>m os delirantes no<br />

grupo geral dos loucos ou alie<strong>na</strong>dos, ora os alie<strong>na</strong>dos desig<strong>na</strong>m<br />

aqueles que perderam to<strong>da</strong> forma e todo vestígio de razão entre os<br />

insensatos que, de um modo geral e menos preciso, têm a "cabeça<br />

desarranja<strong>da</strong>" e o "espírito perturbado". Mas aos poucos, no decorrer<br />

do século XVIII, opera-se uma divisão com um sentido diferente. O<br />

alie<strong>na</strong>do perdeu inteiramente a ver<strong>da</strong>de: é entregue à ilusão de todos<br />

os sentidos, à noite do mundo; ca<strong>da</strong> uma de suas ver<strong>da</strong>des é erro,<br />

ca<strong>da</strong> uma de suas evidências é fantasma. E prisioneiro <strong>da</strong>s forças<br />

mais cegas <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>:<br />

Ora cai numa espécie de demência desprovi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> razão e de todo<br />

sentimento de humani<strong>da</strong>de, ora é agitado por uma paixão violenta que o<br />

atormenta e entra num frenesi que só faz com que respire sangue, morte,<br />

carnifici<strong>na</strong>, e nesses momentos de perturbação e agitação, não reconhecendo<br />

ninguém, não reconhecendo a si mesmo, deve-se temer por tudo 24 .<br />

O alie<strong>na</strong>do atravessou todos os limites <strong>da</strong> acessibili<strong>da</strong>de; tudo,<br />

em seu mundo, tornou-se estranho aos outros e a si mesmo. No<br />

universo do insensato, pelo contrário, é possível reconhecer-se: ali, a<br />

<strong>loucura</strong> é sempre determinável. Ora ela encontra lugar <strong>na</strong> percepção<br />

ou, pelo menos, <strong>na</strong>quilo que pode existir de juízo e de crença numa<br />

percepção —<br />

é um insensato que imagi<strong>na</strong>va que o Pai Eterno tinha aparecido à sua frente e<br />

lhe havia <strong>da</strong>do o poder de pregar a penitência e de reformar o mundo. 25<br />

—, ora se situa <strong>na</strong> apreensão intelectual <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, <strong>na</strong> maneira<br />

24 B.N. Joly de Fleury, ms. 1301, f. 310.<br />

25 B.N. Clairambault, ms. 985, p. 128.<br />

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