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A história da loucura na idade clássica

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moralismo de Cícero não conseguiu confundir 17 .<br />

Ora, o que aconteceu no século XVIII foi um deslizamento <strong>da</strong>s<br />

perspectivas graças ao qual as estruturas do razoável e as do racio<strong>na</strong>l<br />

se inseriram umas <strong>na</strong>s outras a fim de formar uma trama tão estreita<br />

que durante muito tempo não será possível distinguir umas <strong>da</strong>s<br />

outras. Progressivamente se organizaram de acordo com a uni<strong>da</strong>de<br />

de uma única e mesma <strong>loucura</strong>, que é percebi<strong>da</strong> em sua oposição ao<br />

razoável e <strong>na</strong>quilo que ela oferece de si mesma ao racio<strong>na</strong>l. Diferença<br />

pura, estranho por excelência, "outro" numa potência dupla, o louco,<br />

com esse mesmo recuo, vai tor<strong>na</strong>r-se objeto de análise racio<strong>na</strong>l,<br />

plenitude ofereci<strong>da</strong> ao conhecimento, percepção evidente; e será isto<br />

exatamente <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que é aquilo. A partir <strong>da</strong> primeira metade<br />

do século XVIII, e é isto que lhe dá seu peso decisivo <strong>na</strong> <strong>história</strong> do<br />

desatino — a negativi<strong>da</strong>de moral do louco começa a constituir ape<strong>na</strong>s<br />

uma única e mesma coisa com a positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quilo que dele se<br />

pode conhecer: a distância crítica e patética <strong>da</strong> recusa, do nãoreconhecimento,<br />

esse vazio de características tor<strong>na</strong>-se o espaço no<br />

qual vão sere<strong>na</strong>mente aflorar as características que aos poucos<br />

esboçam uma ver<strong>da</strong>de positiva. E é sem dúvi<strong>da</strong> esse movimento que<br />

se pode descobrir sob esta enigmática definição <strong>da</strong> Enciclopédia:<br />

Afastar-se <strong>da</strong> razão sem o saber, por estar privado de idéias, é ser<br />

imbecif; afastar-se <strong>da</strong> razão, sabendo-o, porque se é escravo de uma<br />

paixão violenta, é ser fraco; mas afastar-se <strong>da</strong> razão com confiança, e<br />

com a firme persuasão de estar obedecendo à razão, é o que constitui, a<br />

meu ver, o que chamamos de ser louco 18 .<br />

Estranha definição, tão ári<strong>da</strong> é e tão próxima parece estar <strong>da</strong><br />

velha tradição filosófica e moral. No entanto, nela encontramos,<br />

semi-oculto, todo o movimento que renova a reflexão sobre a<br />

<strong>loucura</strong>: a superposição e a coincidência força<strong>da</strong> entre uma definição<br />

pela negativi<strong>da</strong>de do afastamento (a <strong>loucura</strong> é sempre uma dis tância<br />

que se mantém em relação à razão, um vazio estabelecido e medido)<br />

e uma definição pela plenitude dos caracteres e dos traços que<br />

restabelecem, em forma positiva, as relações com a razão (confiança<br />

e persuasão, sistema de crenças que faz com que a diferença <strong>da</strong><br />

17 Nessas mesmas Tusculanes constata-se um esforço de superar a oposição furorinsania<br />

numa mesma citação moral: «Uma alma robusta não pode ser<br />

ataca<strong>da</strong> pela doença, enquanto o corpo pode; mas o corpo pode ficar doente<br />

sem que tenhamos qualquer culpa por isso, enquanto o mesmo não acontece<br />

com a alma, cujas doenças e paixões, to<strong>da</strong>s, têm por causa o desprezo <strong>da</strong><br />

razão» (Ibid., Livro IV, XIV, 31).<br />

18 Encyclopédie, art. «Loucura».<br />

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