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A história da loucura na idade clássica

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"trata<strong>da</strong>" — em todos os sentidos do termo — em termos de ver<strong>da</strong>de<br />

e erro. Em suma, sempre existiu, no curso <strong>da</strong> era <strong>clássica</strong>, uma<br />

justaposição de dois universos técnicos <strong>na</strong>s terapêuticas <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>.<br />

Um, que repousa numa mecânica implícita <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong>des e se dirige<br />

à <strong>loucura</strong> em sua quali<strong>da</strong>de essencial de paixão, isto é, em sua<br />

quali<strong>da</strong>de de mistura (movimento-quali<strong>da</strong>de) que pertence ao corpo e<br />

à alma, simultaneamente; outro, que repousa num movimento<br />

discursivo <strong>da</strong> razão racioci<strong>na</strong>ste consigo própria e se dirige à <strong>loucura</strong><br />

em sua quali<strong>da</strong>de de erro, dupla i<strong>na</strong>ni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong><br />

imagem, em sua quali<strong>da</strong>de de delírio. O ciclo estrutural <strong>da</strong> paixão e<br />

do delírio que constitui a experiência <strong>clássica</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> reaparece<br />

aqui, no mundo <strong>da</strong>s técnicas — mas sob uma forma sincopa<strong>da</strong>. Sua<br />

uni<strong>da</strong>de só aparece aí de uma maneira distante. O que é visível<br />

imediatamente, em letras maiúsculas, é a duali<strong>da</strong>de, quase a<br />

oposição, <strong>na</strong> medici<strong>na</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, entre os métodos de supressão <strong>da</strong><br />

doença e as formas de investimento do desatino. Estas podem<br />

reportar-se a três figuras essenciais.<br />

1. O despertar. Uma vez que o delírio é o sonho <strong>da</strong>s pessoas<br />

acor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, é preciso tirar os que deliram desse quase-sono,<br />

despertá-los de sua vi<strong>da</strong> de sonhos, entregue às imagens, trazendoos<br />

de volta para uma vigília autêntica, onde o sonho se apaga diante<br />

<strong>da</strong>s figuras <strong>da</strong> percepção. Este despertar absoluto, que elimi<strong>na</strong> uma a<br />

uma to<strong>da</strong>s as formas <strong>da</strong> ilusão, era perseguido por Descartes no<br />

começo de suas Méditations, e ele o encontrava paradoxalmente <strong>na</strong><br />

própria consciência do sonho, <strong>na</strong> consciência <strong>da</strong> consciência<br />

enga<strong>na</strong><strong>da</strong>. Mas entre os loucos é a medici<strong>na</strong> que deve realizar esse<br />

despertar, transformando a solidão <strong>da</strong> coragem cartesia<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />

intervenção autoritária do desperto seguro de sua vigília <strong>na</strong> ilusão do<br />

desperto com sono: caminho oblíquo que atravessa dogmaticamente<br />

o longo caminho de Descartes. O que Descartes descobre ao fi<strong>na</strong>l de<br />

sua resolução e <strong>na</strong> duplicação de uma consciência que nunca se<br />

separa de si mesma e que não se desdobra, a medici<strong>na</strong> impõe do<br />

exterior, e <strong>na</strong> dissociação entre o médico e o doente. O médico, em<br />

relação ao louco, reproduz o momento do Cogito, em relação ao<br />

tempo do sonho, <strong>da</strong> ilusão e <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Cogito exterior, estranho à<br />

própria cogitação e que só pode impor-se a ela <strong>na</strong> forma <strong>da</strong> irrupção.<br />

Esta estrutura de irrupção <strong>da</strong> vigília é uma <strong>da</strong>s formas mais<br />

constantes entre as terapêuticas <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. As vezes ela assume os<br />

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