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A história da loucura na idade clássica

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mundo. O desatino não ostenta mais esses rostos estranhos nos<br />

quais a I<strong>da</strong>de Média gostava de reconhecê-lo, mas sim a máscara<br />

imperceptível do familiar e do idêntico. O desatino é ao mesmo<br />

tempo o próprio mundo e o mesmo mundo separado de si ape<strong>na</strong>s<br />

pela fi<strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> pantomima; seus poderes não são mais os <strong>da</strong><br />

desorientação; não mais lhe pertence fazer surgir aquilo que é<br />

radicalmente outra coisa, mas sim fazer o mundo girar no círculo do<br />

mesmo.<br />

Mas nessa vertigem, em que a ver<strong>da</strong>de do mundo só se mantém<br />

no interior de um vazio absoluto, o homem encontra também a<br />

irônica perversão de sua própria ver<strong>da</strong>de, no momento em que ela<br />

passa dos sonhos <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de para as formas <strong>da</strong> troca. O<br />

desatino configura então um outro gênio mau — não mais aquele que<br />

exila o mundo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de do mundo, mas aquele que, ao mesmo<br />

tempo, mistifica e desmistifica, encanta até o extremo desencanto<br />

essa ver<strong>da</strong>de de si mesmo que o homem confiou a suas mãos, a seu<br />

rosto, a sua fala; um gênio mau que não mais opera quando o<br />

homem quer alcançar a ver<strong>da</strong>de, mas quando quer restituir ao<br />

mundo uma ver<strong>da</strong>de que é a sua própria ver<strong>da</strong>de e que, projetado <strong>na</strong><br />

embriaguez do sensível em que se perde, permanece enfim "imóvel,<br />

estúpido, surpreso" 767 . Não é mais <strong>na</strong> percepção que se aloja a<br />

possibili<strong>da</strong>de do gênio mau, é <strong>na</strong> expressão. E é exatamente nisto<br />

que consiste o cúmulo <strong>da</strong> ironia: o homem entregue ao desatino do<br />

imediato e do sensível, alie<strong>na</strong>do neles através dessa mediação que é<br />

ele mesmo.<br />

O riso do Neveu de Rameau prefigura antecipa<strong>da</strong>mente, e o<br />

reduz, todo o movimento <strong>da</strong> antropologia do século XIX. Em todo o<br />

pensamento pós-hegeliano, o homem irá <strong>da</strong> certeza à ver<strong>da</strong>de pelo<br />

trabalho do espírito e <strong>da</strong> razão. Mas há muito tempo já Descartes<br />

dissera que o homem é incessantemente remetido <strong>da</strong> razão para a<br />

ver<strong>da</strong>de não ver<strong>da</strong>deira do imediato, e isto através de uma mediação<br />

sem trabalho, uma mediação sempre já opera<strong>da</strong> desde a noite dos<br />

tempos. Essa mediação sem paciência e que é, ao mesmo tempo,<br />

distância extrema e absoluta promiscui<strong>da</strong>de, inteiramente negativa<br />

porque sua força é ape<strong>na</strong>s subversiva, porém totalmente positiva<br />

porque fasci<strong>na</strong><strong>da</strong> por aquilo que suprime, é o delírio do desatino — a<br />

enigmática figura <strong>na</strong> qual reconhecemos a <strong>loucura</strong>. Em seu esforço<br />

767 Le Neveu de Rameau, p. 486.<br />

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