15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

priva<strong>da</strong> de sua reali<strong>da</strong>de, seria monotonia vazia, tédio de si mesma,<br />

deserto animal que lhe devolveria sua própria contradição: "Agora<br />

que não mais me possuem, que fazem? entediam-se como cães ...<br />

" 757 Mas uma razão que só é ela mesma <strong>na</strong> posse de uma <strong>loucura</strong><br />

deixa de poder definir-se pela imediata identi<strong>da</strong>de consigo mesma e<br />

alie<strong>na</strong>-se nessa dependência:<br />

O que é sábio não teria um louco; portanto, aquele que tem um louco não é<br />

sábio; se não é sábio, é louco, e talvez, se fosse rei, o louco de seu louco 758 .<br />

O desatino tor<strong>na</strong>-se a razão <strong>da</strong> razão — <strong>na</strong> própria medi<strong>da</strong> em<br />

que a razão só o reconhece a partir <strong>da</strong> maneira de possuí-lo.<br />

O que não passava de bufo<strong>na</strong>ria <strong>na</strong> perso<strong>na</strong>gem irrisória do<br />

hóspede inoportuno revela, afi<strong>na</strong>l de contas, um iminente poder de<br />

irrisão. A aventura do Neveu de Rameau relata a necessária<br />

instabili<strong>da</strong>de e o retorno irônico de to<strong>da</strong> forma de juízo que denuncia<br />

o desatino como coisa que lhe é exterior e não essencial. O desatino<br />

aos poucos ascende até aquilo que o conde<strong>na</strong>, impondo-lhe uma<br />

espécie de servidão retrógra<strong>da</strong>, pois uma sabedoria que acredita<br />

instaurar com a <strong>loucura</strong> uma relação pura de juízo e definição —<br />

"esse é um louco" — desde logo estabeleceu um relacio<strong>na</strong>mento de<br />

posse e obscura dependência: "Esse é meu louco", <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que<br />

sou suficientemente razoável para reconhecer sua <strong>loucura</strong> e em que<br />

esse reconhecimento é a marca, o si<strong>na</strong>l, o emblema de minha razão.<br />

A razão não pode atestar a existência <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> sem comprometer-<br />

se ela mesma <strong>na</strong>s relações <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. O desatino não está fora <strong>da</strong><br />

razão, mas nela, justamente, investido, possuído por ela, e<br />

coisificado. Para a razão, é aquilo que há de mais interior e também<br />

de mais transparente, de mais oferecido. Enquanto a sabedoria e a<br />

ver<strong>da</strong>de são sempre indefini<strong>da</strong>mente recua<strong>da</strong>s pela razão, a <strong>loucura</strong><br />

nunca é <strong>na</strong><strong>da</strong> do que a razão pode ter dela mesma.<br />

Durante muito tempo existiu o louco do rei... em tempo algum houve, com<br />

esse título, o sábio do rei 759 .<br />

Assim, o triunfo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> anuncia-se novamente num duplo<br />

retorno: refluxo do desatino para a razão que só assegura sua<br />

certeza <strong>na</strong> posse <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>; ascensão a uma experiência em que<br />

uma e outra se implicam indefini<strong>da</strong>mente "seria <strong>loucura</strong>, um outro<br />

757 DIDEROT, op. cit., p. 437.<br />

758 Idem, p. 468.<br />

759 Le Neveu de Rameau, p. 468.<br />

379

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!