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A história da loucura na idade clássica

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qual de certa forma se deixa a <strong>loucura</strong> falar, ela mesma, e fazer ouvir<br />

vozes que, pela primeira vez <strong>na</strong> <strong>história</strong> do Ocidente cristão, não<br />

serão nem as <strong>da</strong> profecia, nem as do transe ou <strong>da</strong> possessão, nem as<br />

<strong>da</strong> bufo<strong>na</strong>ria; vozes <strong>na</strong>s quais a <strong>loucura</strong> não fala nem por outra coisa,<br />

nem por outra pessoa, mas por si mesma. No silêncio do<br />

inter<strong>na</strong>mento, a <strong>loucura</strong> conquistou estranhamente uma linguagem<br />

que é a sua.<br />

E durante muito tempo, aquilo a que tradicio<strong>na</strong>lmente se chama<br />

"psiquiatria <strong>clássica</strong>" — aproxima<strong>da</strong>mente, a que vai de Pinel a<br />

Bleuler — formará conceitos que no fundo são ape<strong>na</strong>s compromissos,<br />

incessantes osçilações entre esses dois domínios <strong>da</strong> experiência que o<br />

século XIX não conseguiu unificar: o campo abstrato de uma<br />

<strong>na</strong>tureza teórica <strong>na</strong> qual é possível isolar os conceitos <strong>da</strong> teoria<br />

médica; e o espaço concreto de um inter<strong>na</strong>mento artificialmente<br />

estabelecido, onde a <strong>loucura</strong> começa a falar por si mesma. Houve<br />

como que uma "a<strong>na</strong>lítiça médica" e uma "percepção asilar" que nunca<br />

se adequaram uma à outra, e a mania classificatória dos psiquiatras<br />

do século passado indica provavelmente um incômodo sempre<br />

renovado diante dessas duas fontes de experiência psiquiátrica e <strong>da</strong><br />

impossibili<strong>da</strong>de de conciliá-las. Não é o conflito entre experiência e<br />

teoria, entre a familiari<strong>da</strong>de e o saber abstrato, o bem conhecido e o<br />

conhecido; de um modo mais secreto, é um dilaceramento <strong>na</strong><br />

experiência, que tivemos e talvez tenhamos sempre, <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> —<br />

dilaceramento que separa a <strong>loucura</strong> considera<strong>da</strong> por nossa ciência<br />

como doença mental <strong>da</strong>quilo que ela pode entregar de si mesma no<br />

espaço em que nossa cultura a alienou. Fiel à ameaças <strong>da</strong> morte e ao<br />

sentido <strong>da</strong> linguagem, a percepção asilar sem dúvi<strong>da</strong> fez mais do que<br />

to<strong>da</strong> a nosografia do século XVIII para que um dia se viesse a prestar<br />

atenção àquilo que a <strong>loucura</strong> podia dizer de si mesma. Um trabalho<br />

mais profun<strong>da</strong>mente médico do que a medici<strong>na</strong> estava em vias de<br />

realização lá mesmo onde a medici<strong>na</strong> não tinha curso, lá mesmo<br />

onde os loucos não eram doentes.<br />

Doravante, estamos <strong>na</strong> posse do fio <strong>da</strong> mea<strong>da</strong>. A partir do<br />

momento em que vemos, do fundo do século XVIII, os loucos como<br />

que dividindo-se entre si mesmos e ocupando um lugar que lhes<br />

pertence de fato, compreendemos como se tor<strong>na</strong>ram possíveis o asilo<br />

do século XIX, a psiquiatria positiva, a <strong>loucura</strong> afirma<strong>da</strong> enfim em<br />

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