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A história da loucura na idade clássica

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demônios; uma razão desmantela<strong>da</strong> que conversa com um fantasma.<br />

Contudo, mais profun<strong>da</strong>mente encontra-se uma organização rigorosa<br />

que segue a armadura sem falhas de um discurso. Esse discurso, em<br />

sua lógica, invoca a si as crenças mais sóli<strong>da</strong>s, avançando por<br />

raciocínios e juízos que se encadeiam; é uma espécie de razão em<br />

ato. Em suma, sob o delírio desorde<strong>na</strong>do e manifesto rei<strong>na</strong> a ordem<br />

de um delírio secreto. Neste segundo delírio, que é, num certo<br />

sentido, pura razão, razão liberta<strong>da</strong> de todos os ouropéis exteriores<br />

<strong>da</strong> demência, colhe-se a paradoxal ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. E isto num<br />

duplo sentido, uma vez que aí se encontra tanto aquilo que faz com<br />

que a <strong>loucura</strong> seja ver<strong>da</strong>deira (lógica irrecusável, discurso<br />

perfeitamente organizado, encadeamento sem falhas <strong>na</strong><br />

transparência de uma linguagem virtual) e o que a faz ser<br />

ver<strong>da</strong>deiramente <strong>loucura</strong> (sua <strong>na</strong>tureza própria, o estilo<br />

rigorosamente particular de to<strong>da</strong>s as suas manifestações e a<br />

estrutura inter<strong>na</strong> do delírio).<br />

Contudo, mais profun<strong>da</strong>mente ain<strong>da</strong>, essa linguagem delirante é<br />

a ver<strong>da</strong>de última <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que é sua forma<br />

organizadora, o princípio determi<strong>na</strong>nte de to<strong>da</strong>s as suas<br />

manifestações, quer sejam as do corpo ou as <strong>da</strong> alma. Pois se o<br />

melancólico de Diemerbroek conversa com seu demônio, é porque<br />

sua imagem foi profun<strong>da</strong>mente grava<strong>da</strong> pelo movimento dos espíritos<br />

<strong>na</strong> matéria sempre dúctil do cérebro. Mas, por sua vez, esta figura<br />

orgânica é ape<strong>na</strong>s o reverso de uma preocupação que obsedou o<br />

espírito do doente; ela é como que a sedimentação, no corpo, de um<br />

discurso indefini<strong>da</strong>mente repetido a respeito do castigo que Deus<br />

deve reservar aos pecadores culpados de homicídio. O corpo e os<br />

traços por ele ocultados, a alma e as imagens que ela percebe não<br />

passam, neste caso, de relais <strong>na</strong> sintaxe <strong>da</strong> linguagem delirante.<br />

E receando que nos censurem por fazer to<strong>da</strong> esta análise<br />

repousar sobre uma única observação de um único autor (observação<br />

privilegia<strong>da</strong>, pois se trata de delírio melancólico), procuraremos uma<br />

confirmação desse papel fun<strong>da</strong>mental do discurso <strong>na</strong> concepção<br />

<strong>clássica</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> noutro autor, noutra época e a respeito de uma<br />

doença bem diferente. Trata-se de um caso de "ninfomania"<br />

observado por Bienville. A imagi<strong>na</strong>ção de uma moça, "Julie", havia<br />

sido inflama<strong>da</strong> por leituras precoces e alimenta<strong>da</strong>s pelos propósitos<br />

de uma cria<strong>da</strong> 'inicia<strong>da</strong> nos segredos de Vênus ... , virtuosa Inês aos<br />

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