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A história da loucura na idade clássica

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estruturado se colocará a etiqueta do desatino: "Para ser inter<strong>na</strong>do".<br />

Esse desatino do qual o pensamento do século XVI tinha feito o ponto<br />

dialético de inversão <strong>da</strong> razão, no itinerário de seu discurso, recebe<br />

com isso um conteúdo secreto. Esse desatino se vê ligado a todo um<br />

reajustamento ético onde o que está em jogo é o sentido <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de, a divisão do amor, a profa<strong>na</strong>ção e os limites do sagrado,<br />

<strong>da</strong> pertinência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de à moral. To<strong>da</strong>s essas experiências, de<br />

horizontes tão diversos, compõem em sua profundi<strong>da</strong>de o gesto<br />

bastante simples do inter<strong>na</strong>mento; num certo sentido, ele não passa<br />

do fenômeno superficial de um sistema de operações subterrâneas<br />

que indicam to<strong>da</strong>s a mesma orientação: suscitar no mundo ético uma<br />

divisão uniforme que até então permanecera desconheci<strong>da</strong>. Pode-se<br />

dizer, de modo aproximado, que até à Re<strong>na</strong>scença o mundo ético,<br />

além <strong>da</strong> divisão entre o Bem e o Mal, assegurava seu equilíbrio numa<br />

uni<strong>da</strong>de trágica que era a do destino ou <strong>da</strong> previdência e predileção<br />

divi<strong>na</strong>. Esta uni<strong>da</strong>de vai agora desaparecer, dissocia<strong>da</strong> pela divisão<br />

decisiva entre a razão e o destino. Começa uma crise do mundo ético,<br />

que duplica a grande luta entre o Bem e o Mal com o conflito<br />

irreconciliável entre a razão e o desatino, multiplicando assim as<br />

figuras do dilaceramento: Sade e Nietzsche, pelo menos, são<br />

testemunhos disso. To<strong>da</strong> uma metade do mundo ético deságua assim<br />

no domínio do desatino, atribuindo-lhe um imenso conteúdo concreto<br />

de erotismo, profa<strong>na</strong>ções, ritos e magias, saberes ilumi<strong>na</strong>dos<br />

secretamente investidos pelas leis do coração. No exato momento em<br />

que se liberta o suficiente para tor<strong>na</strong>r-se objeto de percepção, o<br />

desatino vê-se preso em todo esse sistema de servidões concretas.<br />

São essas servidões que, sem dúvi<strong>da</strong>, explicam a estranha<br />

fideli<strong>da</strong>de temporal <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Há gestos obsessivos que soam hoje<br />

como velhos rituais mágicos, conjuntos delirantes que são colocados<br />

sob a mesma luz <strong>da</strong>s antigas iluminuras religiosas; numa cultura <strong>da</strong><br />

qual desapareceu há muito tempo a presença do sagrado, encontra-<br />

se por vezes um apego mórbido à profa<strong>na</strong>ção. Esta persistência<br />

parece interrogar-nos sobre a obscura memória que acompanha a<br />

<strong>loucura</strong>, conde<strong>na</strong> suas invenções a serem ape<strong>na</strong>s retornos e desig<strong>na</strong>a<br />

freqüentemente como a arqueologia espontânea <strong>da</strong>s culturas. O<br />

desatino seria a grande memória dos povos, a maior fideli<strong>da</strong>de deles<br />

para com o passado; nele, a <strong>história</strong> lhes será indefini<strong>da</strong>mente<br />

contemporânea. Basta inventar o elemento universal dessas<br />

persistências. Mas fazer isso é deixar-se aprisio<strong>na</strong>r nos prestígios <strong>da</strong><br />

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