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A história da loucura na idade clássica

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Inúmeras pessoas, para não dizer to<strong>da</strong>s, somente se tor<strong>na</strong>m loucas por<br />

terem se ocupado em demasia com um objeto 54 .<br />

No interior <strong>da</strong> imagem, confisca<strong>da</strong> por ele e incapaz de escaparlhe,<br />

a <strong>loucura</strong> é, no entanto, mais do que a imagem, formando um<br />

ato de secreta constituição.<br />

Qual é esse ato? Ato de crença, ato de afirmação e de negação<br />

— discurso que sustenta a imagem e ao mesmo tempo trabalha-a,<br />

cava nela, estende-se ao longo de um raciocínio e organiza-a ao<br />

redor de um segmento de linguagem. O homem que imagi<strong>na</strong> ser de<br />

vidro não está louco, pois todo aquele que dorme pode ter essa<br />

imagem num sonho. Mas será louco se, acreditando ser de vidro,<br />

concluir que é frágil, que corre o risco de quebrar-se e que portanto<br />

não deve tocar em nenhum objeto demasiado resistente, que deve<br />

mesmo permanecer imóvel, etc.. 55 Este raciocínio é o de um louco,<br />

mas deve-se observar que, em si mesmo, não é nem absurdo nem<br />

ilógico. Pelo contrário, as figuras mais coercitivas <strong>da</strong> lógica estão,<br />

nele, corretamente aplica<strong>da</strong>s. E Zacchias não tem dificul<strong>da</strong>de para<br />

encontrá-las, com todo o rigor de que se revestem, entre os<br />

alie<strong>na</strong>dos. Silogismo, como num que se deixava morrer de fome: "Os<br />

mortos não comem; ora, estou morto, portanto não devo comer".<br />

Indução indefini<strong>da</strong>mente prolonga<strong>da</strong> neste perseguido: "Este, aquele<br />

e aquele outro são meus inimigos; ora, todos são homens, portanto<br />

todos os homens são meus inimigos". Entimema neste outro: "A<br />

maioria dos que moraram nesta casa estão mortos, portanto, eu, que<br />

morei nesta casa, estou morto" 56 . Maravilhosa lógica dos loucos, que<br />

parece zombar <strong>da</strong> dos lógicos, pois assemelha-se a esta, ou melhor,<br />

porque é exatamente a<br />

mesma e porque, no recanto mais secreto <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, <strong>na</strong> base<br />

de tantos erros, de tantos absurdos, de tantas palavras e gestos sem<br />

seqüência, fi<strong>na</strong>lmente se descobre a perfeição, profun<strong>da</strong>mente oculta,<br />

de um discurso. Ex quibus, conclui Zacchias, vides quidem<br />

intellectum optime discurrere. A linguagem última <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> é a <strong>da</strong><br />

razão, mas envolvi<strong>da</strong> no prestígio <strong>da</strong> imagem, limita<strong>da</strong> ao espaço<br />

aparente que a <strong>loucura</strong> define, formando assim, ambas,<br />

exteriormente à totali<strong>da</strong>de e à universali<strong>da</strong>de do discurso, uma<br />

54 Idem, ibid., p. 20.<br />

55 Cf. DAQUIN, Philosophie de la folie, p. 30.<br />

56 ZACCHIAS, Quaestiones medico-legales, Livro II, tít. I, questão 4, p. 120.<br />

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