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A história da loucura na idade clássica

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superfície <strong>da</strong>s aparências. Suas tardes e suas noites tinham sido<br />

assombra<strong>da</strong>s por ela, e emprestaram a essa ameaça todos os<br />

bestiários e todos os Apocalipses de sua imagi<strong>na</strong>ção. Mas, por estar<br />

tão presente e exercer tanta pressão, o mundo <strong>da</strong> insani<strong>da</strong>de era,<br />

exatamente por isso, percebido de uma maneira difícil; era sentido,<br />

apreendido e reconhecido antes mesmo de existir; era sonhado e<br />

indefini<strong>da</strong>mente prolongado <strong>na</strong>s paisagens <strong>da</strong> representação. Sentir<br />

sua presença tão próxima era não percebê-lo: era uma certa maneira<br />

de experimentar o mundo em sua totali<strong>da</strong>de, uma certa to<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

atribuí<strong>da</strong> a to<strong>da</strong> percepção. O inter<strong>na</strong>mento destaca a razão, isola-a<br />

dessas paisagens <strong>na</strong>s quais ela sempre estivera presente e onde era<br />

ao mesmo tempo evita<strong>da</strong>. O inter<strong>na</strong>mento libera-a igualmente desses<br />

equívocos abstratos que, até Montaigne, até a liberti<strong>na</strong>gem erudita,<br />

implicavam-<strong>na</strong> necessariamente no jogo <strong>da</strong> razão. Através ape<strong>na</strong>s do<br />

movimento do inter<strong>na</strong>mento, o desatino se vê libertado: libertado <strong>da</strong>s<br />

paisagens <strong>na</strong>s quais estava presente por to<strong>da</strong> parte — e ei-lo por<br />

conseguinte localizado — mas libertado também de suas<br />

ambigüi<strong>da</strong>des dialéticas e nessa medi<strong>da</strong> delimitado em sua presença<br />

concreta. Toma-se agora um recuo necessário a fim de que a<br />

insani<strong>da</strong>de se torne objeto <strong>da</strong> percepção.<br />

Mas em que horizonte é ela percebi<strong>da</strong>? No de uma reali<strong>da</strong>de<br />

social, é evidente. A partir do século XVII, o desatino não é mais a<br />

grande assombração do mundo; deixa também de ser a dimensão<br />

<strong>na</strong>tural <strong>da</strong>s aventuras <strong>da</strong> razão. Assume o aspecto de um fato<br />

humano, de uma varie<strong>da</strong>de espontânea no campo <strong>da</strong>s espécies<br />

sociais. O que outrora constituía um inevitável perigo <strong>da</strong>s coisas e <strong>da</strong><br />

linguagem do homem, de sua razão e de sua terra, assume agora<br />

figura de perso<strong>na</strong>gem. Ou melhor, de perso<strong>na</strong>gens. Os homens do<br />

desatino são tipos que a socie<strong>da</strong>de reconhece e isola: existe o<br />

devasso, o dissipador, o homossexual, o mágico, o suici<strong>da</strong>, o<br />

libertino. O desatino começa a ser avaliado segundo um certo<br />

distanciamento <strong>da</strong> norma social. Mas não havia perso<strong>na</strong>gens também<br />

<strong>na</strong> Nau dos Loucos, e esse grande embarque que os textos e a<br />

iconografia do século XV apresentavam não é a prefiguração<br />

simbólica do inter<strong>na</strong>mento? A sensibili<strong>da</strong>de para esse problema já<br />

não era a mesma quando a sanção era diferente? Na ver<strong>da</strong>de, a<br />

Stultifera Navis tem a bordo ape<strong>na</strong>s perso<strong>na</strong>gens abstratas, tipos<br />

morais: o glutão, o sensual, o ímpio, o orgulhoso. E se foram<br />

colocados à força no meio dessa equipagem de insanos, para uma<br />

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