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A história da loucura na idade clássica

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Encara<strong>da</strong> deste modo, a mágica vê-se esvazia<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> sua<br />

eficácia sacrílega: ela não mais profa<strong>na</strong>, ilude. Seu poder é o <strong>da</strong><br />

ilusão: num duplo sentido, a saber, que ela não tem reali<strong>da</strong>de, mas<br />

cega os que não têm o espírito reto nem uma vontade firme. Se ela<br />

pertence ao domínio do mal, não é mais porque ela manifesta<br />

poderes obscuros e transcendentais em sua ação, mas sim <strong>na</strong> medi<strong>da</strong><br />

em que toma lugar num sistema de erros que tem seus artesãos e<br />

seus bobos, seus ilusionistas e seus ingênuos. Ela pode ser o veículo<br />

de crimes reais 52 , mas em si mesma não é nem um gesto criminoso,<br />

nem uma ação sacrílega. Despi<strong>da</strong> de seus poderes sacros, ostenta<br />

ape<strong>na</strong>s intenções maléficas: uma ilusão do espírito a serviço <strong>da</strong>s<br />

desordens do coração. Não é mais julga<strong>da</strong> conforme seu prestígio de<br />

profa<strong>na</strong>dora, mas segundo aquilo que ela provoca como insani<strong>da</strong>de.<br />

Essa é uma modificação importante. Rompe-se a uni<strong>da</strong>de que<br />

outrora agrupava, sem descontinui<strong>da</strong>de, o sistema <strong>da</strong>s práticas, a<br />

crença <strong>da</strong>quele que as utilizava e o juízo <strong>da</strong>queles que faziam imperar<br />

as conde<strong>na</strong>ções. Doravante, existirá o sistema denunciado do exterior<br />

como sendo um conjunto ilusório. E, por outro lado, o sistema vivido<br />

a partir do interior, por uma adesão que não é mais uma peripécia<br />

ritual, mas evento e escolha individual: quer seja um erro<br />

virtualmente criminoso, quer seja um crime que se aproveita<br />

voluntariamente do erro. Em todo caso, a cadeia de figuras que<br />

assegurava, nos malefícios <strong>da</strong> magia, a transmissão ininterrupta do<br />

mal vê-se rompi<strong>da</strong> e como que dividi<strong>da</strong> entre um mundo exterior que<br />

permanece vazio ou encerrado <strong>na</strong> ilusão, e uma consciência<br />

delimita<strong>da</strong> <strong>na</strong> culpabili<strong>da</strong>de de suas intenções. O mundo <strong>da</strong>s<br />

operações onde se defrontavam perigosamente o sagrado e o profano<br />

desaparece; está <strong>na</strong>scendo um mundo onde a eficácia simbólica se<br />

reduz a ilusórias imagens que ocultam mal a vontade culpa<strong>da</strong>. Todos<br />

esses velhos ritos <strong>da</strong> magia, <strong>da</strong> profa<strong>na</strong>ção, <strong>da</strong> blasfêmia, to<strong>da</strong>s<br />

essas palavras, doravante ineficazes, deslizam de um domínio <strong>da</strong><br />

eficácia onde tinham sentido para um domínio <strong>da</strong> ilusão onde se<br />

tor<strong>na</strong>m sem sentido 53 e condenáveis ao mesmo tempo: o <strong>da</strong><br />

insani<strong>da</strong>de. Dia virá em que a profa<strong>na</strong>ção e to<strong>da</strong> sua gestuali<strong>da</strong>de<br />

trágica terá ape<strong>na</strong>s o sentido patológico <strong>da</strong> obsessão.<br />

52 «Por uma seqüência funesta de compromissos, aqueles que mais se entregaram<br />

à conduta desses sedutores teriam sido levados ao extremo criminoso de<br />

acrescentar o malefício e o veneno às impie<strong>da</strong>des e aos sacrilégios».<br />

DELAMARE, idem.<br />

53 Insense: jogo de palavras entre sentido, sem sentido e insano (N. do T.).<br />

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