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A história da loucura na idade clássica

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Se um prisioneiro que já ganhou algum prêmio, que está ape<strong>na</strong>s<br />

a uma ou duas etapas de sua liber<strong>da</strong>de, perturbar a missa, ou se se<br />

mostrar "desregrado em seus costumes", logo perderá o benefício<br />

adquirido. A liber<strong>da</strong>de não tem ape<strong>na</strong>s um preço mercantil, mas<br />

também um valor moral, e deve ser adquiri<strong>da</strong> através <strong>da</strong> virtude.<br />

Portanto, o prisioneiro é colocado no ponto de encontro de dois<br />

conjuntos: um, puramente econômico, constituído pelo trabalho, seu<br />

produto e suas gratificações; outro, puramente moral, constituído<br />

pela virtude, pela vigilância e pelas recompensas. Quando um e outro<br />

coincidem, num trabalho perfeito que é ao mesmo tempo pura<br />

morali<strong>da</strong>de, o interno está livre. A própria casa de correção, essa<br />

Bicêtre perfeita, não passa de um benefício — Musquinet estima esse<br />

trabalho não remunerado em exatamente 500 000 libras por ano<br />

para 400 operários; e para o mundo interior que ele encerra, é uma<br />

gigantesca purificação moral:<br />

Não existe homem tão corrompido a ponto de ser incorrigível; trata-se ape<strong>na</strong>s<br />

de fazer com que conheça seus ver<strong>da</strong>deiros interesses, e nunca de<br />

embrutecê-lo com punições insuportáveis e sempre acima <strong>da</strong> fraqueza<br />

huma<strong>na</strong> 21 .<br />

Tocamos aí <strong>na</strong>s formas extremas do mito do inter<strong>na</strong>mento. Este<br />

se esboça num esquema complexo, onde to<strong>da</strong>s as intenções<br />

transparecem. Com to<strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de, transforma-se <strong>na</strong>quilo que já<br />

era obscuramente: controle moral para os internos, lucro econômico<br />

para os outros. E o produto do trabalho aí realizado decompõe-se<br />

rigorosamente: de um lado o lucro, que cabe inteiramente à<br />

administração, e através dela à socie<strong>da</strong>de; do outro, a gratificação,<br />

que cabe ao trabalhador sob a forma de certificados de morali<strong>da</strong>de.<br />

Espécie de ver<strong>da</strong>de caricatural e que não desig<strong>na</strong> ape<strong>na</strong>s aquilo que o<br />

asilo pretendia ser, mas o estilo no qual to<strong>da</strong> uma forma <strong>da</strong><br />

consciência burguesa estabelecia as relações entre o trabalho, o lucro<br />

e a virtude. É o ponto onde a <strong>história</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> resvala para os<br />

mitos onde se exprimiram tanto a razão quanto o desatino 22 .<br />

Com esse sonho de um trabalho realizado inteiramente no<br />

despojamento <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de, com este outro sonho de um trabalho<br />

que encontra sua positivi<strong>da</strong>de <strong>na</strong> morte <strong>da</strong>quele que o realiza, o<br />

21 Idem, ibid., p. 11.<br />

22 Não se deve esquecer que Musquinet estivera inter<strong>na</strong>do em Bicêtre sob o Antigo<br />

Regime, que foi conde<strong>na</strong>do e novamente preso sob a Revolução —considerado<br />

ora louco, ora criminoso.<br />

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