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A história da loucura na idade clássica

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os costumes do século XVIII talvez não prezassem, mas que agora<br />

convém honrar se se pretende um retorno às virtudes de outrora.<br />

Esta região <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> e do furor onde <strong>na</strong>sce o gesto criminoso<br />

não o inocenta justamente a não ser <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que ela não é de<br />

uma neutrali<strong>da</strong>de moral rigorosa, mas em que representa um papel<br />

preciso: exaltar um valor que a socie<strong>da</strong>de reconhece sem permitir-lhe<br />

ter livre curso. Prescreve-se o casamento, mas é-se obrigado a fechar<br />

os olhos à infideli<strong>da</strong>de. A <strong>loucura</strong> será desculpa<strong>da</strong> se manifestar<br />

ciúmes, obsti<strong>na</strong>ção, fideli<strong>da</strong>de — ain<strong>da</strong> que ao preço <strong>da</strong> vingança. A<br />

psicologia deve alojar-se no interior de uma má consciência, no jogo<br />

entre valores reconhecidos e valores exigidos. E então, e somente<br />

então, que ela pode dissolver a reali<strong>da</strong>de do crime, e inocentá-lo<br />

numa espécie de dom-quixotismo <strong>da</strong>s virtudes impraticáveis.<br />

Se não deixa transparecer esses valores i<strong>na</strong>cessíveis, o crime<br />

pode ser tão determi<strong>na</strong>do quanto se quiser pelas leis <strong>da</strong> psicologia e<br />

pelos mecanismos do coração: não merece nenhuma indulgência,<br />

revela ape<strong>na</strong>s vício, perversi<strong>da</strong>de. Bellart toma o cui<strong>da</strong>do de<br />

estabelecer uma "grande diferença entre os crimes: uns são vis, e<br />

anunciam uma alma enlo<strong>da</strong>ça<strong>da</strong>, como o roubo" — nos quais a<br />

socie<strong>da</strong>de burguesa evidentemente não pode reconhecer valor<br />

algum; a estes deve-se acrescentar ain<strong>da</strong> outros gestos, ain<strong>da</strong> mais<br />

atrozes, que "anunciam uma alma gangre<strong>na</strong><strong>da</strong> pela perversi<strong>da</strong>de,<br />

como o assassi<strong>na</strong>to premeditado". Em compensação, outros revelam<br />

"uma alma viva e apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong>, como todos aqueles que são levados<br />

pelo primeiro impulso, como o que Gras cometeu" 53 . O grau de<br />

determi<strong>na</strong>ção de um gesto, portanto, não determi<strong>na</strong> a<br />

responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que o cometeu; pelo contrário, quanto mais<br />

uma ação parecer <strong>na</strong>scer bem longe e enraizar-se nessas <strong>na</strong>turezas<br />

"de lama", mais é ela culpa<strong>da</strong>; ao contrário, <strong>na</strong>sci<strong>da</strong> inespera<strong>da</strong>mente<br />

e movi<strong>da</strong>, como de surpresa, por um movimento puro do coração <strong>na</strong><br />

direção de uma espécie de heroísmo solitário e absurdo, ela merece<br />

uma sanção menor. E-se culpado por ter recebido uma <strong>na</strong>tureza<br />

perversa e uma educação vicia<strong>da</strong>; mas é-se inocente nessa passagem<br />

imediata e violenta de uma moral para outra — isto é, de uma moral<br />

pratica<strong>da</strong> que não se ousa reconhecer para uma moral exalta<strong>da</strong> que<br />

se recusa a praticar, para maior bem de todos.<br />

53 BELLART, op. cit., p. 90.<br />

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