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A história da loucura na idade clássica

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10. O Grande Medo<br />

O século XVIII não podia entender direito o sentido de Le Neveu<br />

de Rameau. E, no entanto, algo acontecera, <strong>na</strong> própria época em que<br />

o texto foi escrito, que prometia uma mu<strong>da</strong>nça decisiva. Coisa<br />

curiosa: esse desatino que tinha sido posto de lado <strong>na</strong> distância do<br />

inter<strong>na</strong>mento e que se havia alie<strong>na</strong>do progressivamente <strong>na</strong>s formas<br />

<strong>na</strong>turais <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, ressurge carregado de novos perigos e como que<br />

dotado de um outro poder de questio<strong>na</strong>mento. Mas o que o século<br />

XVIII percebe de início não é a interrogação secreta, é ape<strong>na</strong>s o<br />

hábito social: as roupas rasga<strong>da</strong>s, a arrogância em farrapos, a<br />

insolência que se suporta e cujos poderes inquietantes são calados<br />

através de uma indulgência diverti<strong>da</strong>. O século XVIII não poderia terse<br />

reconhecido em Rameau, o sobrinho, mas ele estava presente<br />

inteiramente no eu que lhe serve de interlocutor e de "mostrador",<br />

por assim dizer, divertido mas não sem certas reservas e com uma<br />

abafa<strong>da</strong> inquietação, pois é a primeira vez desde o Grande<br />

Inter<strong>na</strong>mento que o louco se tor<strong>na</strong> perso<strong>na</strong>gem social. É a primeira<br />

vez que se entabula uma conversa com ele, interrogando-o<br />

novamente. O desatino ressurge como tipo, o que é pouco:<br />

reaparece, to<strong>da</strong>via, e lentamente retoma lugar <strong>na</strong> familiari<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

paisagem social. É lá que uma deze<strong>na</strong> de anos antes <strong>da</strong> Revolução é<br />

encontrado por Mercier, sem mais surpresas:<br />

Entre num outro café, um homem lhe diz ao ouvido, num tone calmo e<br />

colocado: o senhor não poderia imagi<strong>na</strong>r a ingratidão do governo para<br />

comigo, e como ele é cego com seus interesses. Há trinta anos que deixei de<br />

lado meus próprios negócios, fechei-me em meu. escritório, meditando,<br />

sonhando, calculando; imaginei um projeto admissível para pagar to<strong>da</strong>s as dívi<strong>da</strong>s<br />

do Estado; depois, um outro para enriquecer o rei e assegurar-lhe uma ren<strong>da</strong> de<br />

400 milhões; e mais um para derrotar para sempre a Inglaterra, cujo nome já me<br />

irrita... Enquanto me dedicava inteiramente a essas vastas operações, que<br />

exigiam to<strong>da</strong> a aplicação de meu gênio, distraí-me de minhas misérias<br />

domésticas, e alguns credores vigilantes me jogaram <strong>na</strong> prisão por três anos...<br />

Mas veja, senhor, de que serve o patriotismo: para morrer desconhecido e mártir<br />

de sua pátria 1 .<br />

A distância, perso<strong>na</strong>gens como essa fazem um círculo ao redor<br />

do Neveu de Rameau; não têm dimensões próprias, sendo que<br />

ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> procura do pitoresco podem passar como seus epígonos.<br />

1 MERCIER, Tableau de Paris, I, pp. 233-234.<br />

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