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A história da loucura na idade clássica

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em ple<strong>na</strong> consciência, e como experiência total do mundo: "Pelos<br />

céus, o que você chama de pantomima dos patifes é o grande abalo<br />

<strong>da</strong> terra!" 765 Ser, ele mesmo, esse barulho, essa música, esse<br />

espetáculo, essa comédia, realizar-se como coisa e como coisa<br />

ilusória, ser assim não ape<strong>na</strong>s coisa, mas vazio e <strong>na</strong><strong>da</strong>, ser o vazio<br />

absoluto dessa absoluta plenitude pela qual se é fasci<strong>na</strong>do do<br />

exterior, ser enfim a vertigem desse <strong>na</strong><strong>da</strong> e desse ser em seu círculo<br />

volúvel, e sê-lo ao mesmo tempo até o aniquilamento total de uma<br />

consciência escrava e até a suprema glorificação de uma consciência<br />

sobera<strong>na</strong> — tal é, sem dúvi<strong>da</strong>, o sentido do Neveu de Rameau, que<br />

profere no meio do século XVIII, e bem antes de ser ple<strong>na</strong>mente<br />

ouvi<strong>da</strong> a palavra de Descartes, uma lição bem mais anticartesia<strong>na</strong> do<br />

que todo Locke, todo Voltaire ou todo Hume.<br />

O Neveu de Rameau, em sua reali<strong>da</strong>de huma<strong>na</strong>, nessa frágil vi<strong>da</strong><br />

que não escapa ao anonimato a não ser por um nome que nem<br />

mesmo é o seu — sombra de uma sombra — é para além e aquém de<br />

to<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, o delírio, realizado como existência, do ser e do não-<br />

ser do real. Quando se pensa, em compensação, que o projeto de<br />

Descartes era suportar a dúvi<strong>da</strong> de maneira provisória até o<br />

aparecimento do ver<strong>da</strong>deiro <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> idéia evidente, vê-se<br />

bem que o não-cartesianismo do pensamento moderno, no que pode<br />

ter de decisivo, não começa por uma discussão sobre as idéias i<strong>na</strong>tas<br />

ou pela incrimi<strong>na</strong>ção do argumento ontológico, mas por esse texto do<br />

Neveu de Rameau, por essa existência que ele desig<strong>na</strong> numa<br />

inversão que só podia ser ouvi<strong>da</strong> <strong>na</strong> época de Hõlderlin e Hegel. O<br />

que aí é posto em questão é exatamente aquilo posto em foco no<br />

Paradoxe sur le comédien. Mas é também o outro lado disso: não<br />

mais aquilo que, <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, deve ser promovido no não-ser <strong>da</strong><br />

comédia por um coração frio e uma inteligência lúci<strong>da</strong>, mas aquilo<br />

que, do não-ser <strong>da</strong> existência, pode realizar-se <strong>na</strong> vã plenitude <strong>da</strong><br />

aparência, e isto através do delírio que chegou ao ponto extremo <strong>da</strong><br />

consciência. Não mais é necessário, após Descartes, atravessar<br />

corajosamente to<strong>da</strong>s as incertezas do delírio, do sonho, <strong>da</strong>s ilusões,<br />

não é mais necessário superar os perigos do desatino: é do próprio<br />

fundo do desatino que nos podemos interrogar sobre a razão. E está<br />

novamente aberta a possibili<strong>da</strong>de de reconquistar a essência do<br />

mundo no torvelinho de um delírio que totaliza, numa ilusão<br />

equivalente à ver<strong>da</strong>de, o ser e o não-ser do real.<br />

765 Ibidem, p. 501.<br />

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