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A história da loucura na idade clássica

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1º) Dia virá em que essa presença <strong>da</strong> animali<strong>da</strong>de <strong>na</strong> <strong>loucura</strong><br />

será considera<strong>da</strong>, em sua perspectiva evolucionista, como signo —<br />

mais ain<strong>da</strong>, como a própria essência — <strong>da</strong> doença. Na época<br />

<strong>clássica</strong>, pelo contrário, ela manifesta com singular brilho<br />

justamente o fato de que o louco não é um doente. Com efeito, a<br />

animali<strong>da</strong>de protege o louco contra tudo o que pode haver de frágil,<br />

de precário, de doentio no homem. A solidez animal <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, e<br />

essa espessura que ela toma emprestado do mundo cego do animal,<br />

endurece o louco contra a fome, o calor, o frio, a dor. É notório, até<br />

o fi<strong>na</strong>l do século XVIII, que os loucos podem suportar indefini<strong>da</strong>mente<br />

as misérias <strong>da</strong> existência. Inútil protegê-los: não é necessário nem<br />

cobri-los, nem aquecê-los. Quando em 1811 Samuel Tuke visita<br />

uma workhouse dos con<strong>da</strong>dos do sul, vê celas <strong>na</strong>s quais o dia só<br />

chega através de frestas feitas <strong>na</strong>s portas. To<strong>da</strong>s as mulheres<br />

estavam inteiramente nuas. Ora,<br />

a temperatura era extremamente rigorosa, e <strong>na</strong> véspera o termômetro havia<br />

marcado 18° de frio. Uma dessas infelizes estava deita<strong>da</strong> sobre um pouco<br />

de palha, sem coberta.<br />

Esta aptidão dos alie<strong>na</strong>dos para suportar, como os animais, as<br />

piores intempéries, ain<strong>da</strong> para Pinel será um dogma médico; ele<br />

sempre admirará a constância e a facili<strong>da</strong>de -com que alie<strong>na</strong>dos de<br />

um e outro sexo suportam o frio mais rigoroso e mais prolongado. No<br />

mês de Nivôse do ano III 37 , durante alguns dias em que o<br />

termômetro indicava 10, 11 e mesmo 16° abaixo do gelo, um<br />

alie<strong>na</strong>do do hospício de Bicêtre não podia ficar com sua coberta de lã<br />

e permanecia sentado sobre o chão gelado de sua célula. De manhã,<br />

mal sua porta era aberta viam-no correr em camisa pelo interior dos<br />

pátios, pegar gelo e neve <strong>na</strong>s mãos, aplicá-las no peito e deixar que<br />

se fundissem com uma espécie de deleite 38 .<br />

A <strong>loucura</strong>, com tudo o que pode comportar de feroci<strong>da</strong>de animal,<br />

preserva o homem dos perigos <strong>da</strong> doença; ela o faz ascender a uma<br />

rapaci<strong>da</strong>de é um lobo, pela sutileza um leão, pela fraude e engodo uma<br />

raposa, pela hipocrisia um macaco, pela inveja um urso, pela vingança um<br />

tigre, pela maledicência, pelas blasfémias e detrações um cão, uma serpente<br />

que vive de terra pela avareza, camaleão pela inconstância, pantera pela<br />

heresia, basilisco pela lascívia dos olhos dragão que sempre arde de sede pela<br />

bebedeira, um porco pela luxuria». Le Fouet des Paillards, Rouen, 1623, p.<br />

175.<br />

37 O mês de Nivôse (de nivosus, nevado) ia de 21 de dezembro a 19 de janeiro; era<br />

o quarto mês do calendário republicano. (N. do T.)<br />

38 PINEL, Traité médico-philosophique, I, pp. 60-61.<br />

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