15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Quando Fodéré chega ao hospital de Estrasburgo, em 1814,<br />

encontra instalado, com muito cui<strong>da</strong>do e habili<strong>da</strong>de, uma espécie<br />

de estábulo humano: "Para os loucos impor tunos e que se sujam"<br />

pensou-se em estabelecer, <strong>na</strong>s extremi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s grandes salas,<br />

"espécies de jaulas ou armários com prateleiras que no máximo<br />

podem conter um homem de estatura média". Essas jaulas têm<br />

um soalho em forma de clarabóia que não repousa diretamente<br />

sobre o chão, encontrando-se elevado cerca de quinze<br />

centímetros. Sobre essas ripas jogou-se um pouco de palha "sobre<br />

a qual dorme o insano, nu ou seminu, onde come e onde ficam<br />

seus dejetos ... " 35<br />

O que existe aí é, sem dúvi<strong>da</strong>, todo um sistema de segurança<br />

contra a violência dos alie<strong>na</strong>dos e o desencadeamento de sua raiva.<br />

Esse desencadeamento é entendido, de início, como perigo social.<br />

Mas o que é sobretudo importante é que esse perigo é imagi<strong>na</strong>do<br />

sob as espécies de uma liber<strong>da</strong>de animal. O fato negativo que é "o<br />

louco ser tratado não como um ser humano" tem um conteúdo<br />

bastante positivo; esta inuma<strong>na</strong> diferença tem, <strong>na</strong> reali<strong>da</strong>de, valor<br />

de obsessão: suas raízes estão nos velhos temores que, desde a<br />

Antigui<strong>da</strong>de e sobretudo desde a I<strong>da</strong>de Média, deram ao mundo<br />

ani mal sua estranha familiari<strong>da</strong>de, suas maravilhas ameaçadoras e<br />

todo seu peso de abafa<strong>da</strong> inqui etude. No entanto, esse medo<br />

animal, que acompanha, com to<strong>da</strong> sua paisagem imaginária, a<br />

percepção <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, não tem mais o mesmo sen tido de dois ou<br />

três séculos antes: a metamorfose animal não é mais o signo<br />

visível dos poderes infer<strong>na</strong>is, nem o resultado de uma<br />

alquimia di abólica do de satino. O animal no homem não funcio<strong>na</strong><br />

mais como um indício do além; ele se tornou sua <strong>loucura</strong>, que não<br />

mantém relação alguma a não ser consigo mesma: sua <strong>loucura</strong> em<br />

estado <strong>na</strong>tural. A animali<strong>da</strong>de que assola a <strong>loucura</strong> despoja o homem<br />

do que nele pode haver de humano; mas não para entregá-lo a<br />

outros poderes, ape<strong>na</strong>s para estabelecê-lo no grau zero de sua<br />

própria <strong>na</strong>tureza. A <strong>loucura</strong>, em suas formas últimas, é, para o<br />

Classicismo, o homem em relacio<strong>na</strong>mento imediato com sua<br />

animali<strong>da</strong>de, sem outra referência qualquer, sem nenhum recurso 36 .<br />

35 FODÉRÉ, Traité du délire appliqué à la médecine, à la morale, à lalégislation,<br />

Paris, 1817, I, op. 190-191.<br />

36 Esse relacio<strong>na</strong>mento moral que se estabelece no próprio homem com sua<br />

animali<strong>da</strong>de, não como poder de metamorfose mas como limite de sua<br />

<strong>na</strong>tureza, vem bem expresso num texto de Mathurin Le Picard: «Pela<br />

168

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!