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A história da loucura na idade clássica

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No âmago <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, o delírio assume um novo sentido. Até<br />

então, ele se definia inteiramente no espaço do erro: ilusão, falsa<br />

crença, opinião mal fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> porém obsti<strong>na</strong><strong>da</strong>mente manti<strong>da</strong>,<br />

ele envolvia tudo aquilo que um pensamento pode produzir quando<br />

não mais se coloca no domínio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Agora, o delírio é o lugar<br />

de um eterno instantâneo confronto entre a necessi<strong>da</strong>de e o fascínio,<br />

a solidão do ser e o cintilar <strong>da</strong> aparência, a plenitude imediata o nãoser<br />

<strong>da</strong> ilusão. Na<strong>da</strong> é despido de seu velho parentesco com o sonho,<br />

mas alterou-se a face dessa semelhança; delírio não é mais a<br />

manifestação do que existe de mais subjetivo no sonho. Não é mais o<br />

deslizamento <strong>na</strong> direção <strong>da</strong>quilo que Heráclito já chamava de <br />

. Se ain<strong>da</strong> mantém parentescos com o sonho, é por tudo<br />

aquilo que, no sonho, é jogo <strong>da</strong> aparência luminosa e <strong>da</strong> sur<strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de, insistência <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des e servidão <strong>da</strong>s fasci<strong>na</strong>ções,<br />

por tudo aquilo que nele é diálogo sem linguagem do dia e <strong>da</strong> luz.<br />

Sonho e delírio não mais se comunicam <strong>na</strong> noite <strong>da</strong> cegueira, mas<br />

nessa clari<strong>da</strong>de <strong>na</strong> qual o que há de mais imediato no ser enfrenta o<br />

que há de mais indefini<strong>da</strong>mente refletido <strong>na</strong>s miragens <strong>da</strong> aparência.<br />

É esse trágico que delírio e sonho recobrem e manifestam ao mesmo<br />

tempo <strong>na</strong> retórica ininterrupta de sua ironia.<br />

Confrontação trágica entre a necessi<strong>da</strong>de e a ilusão de um modo<br />

onírico, que anuncia Freud e Nietzsche, o delírio do Neveu de Rameau<br />

é ao mesmo tempo a repetição irônica do mundo, sua reconstituição<br />

destruidora no teatro <strong>da</strong> ilusão:<br />

...gritando, cantando, agitando-se como um furioso, fazendo ele sozinho os<br />

<strong>da</strong>nçarinos, as <strong>da</strong>nçari<strong>na</strong>s, os cantores, as cantoras, to<strong>da</strong> uma orquestra, todo<br />

um teatro lírico, dividindo-se em vinte papéis diversos, correndo, parando<br />

com a cara de um energúmeno, os olhos resplandecentes, a boca<br />

espumando... chorava, gritava, suspirava, olhava calmo e enternecido ou<br />

furioso; era uma mulher que desfalece de dor, um infeliz entregue a seu<br />

desespero, um templo que se eleva, pássaros que se calam ao sol poente...<br />

Era a noite com suas trevas, era a sombra e o silêncio 766 .<br />

O desatino não se reencontra como presença furtiva do outro<br />

mundo, mas aqui mesmo, <strong>na</strong> transcendência <strong>na</strong>scente de todo ato de<br />

expressão, desde a origem <strong>da</strong> linguagem até esse momento<br />

simultaneamente inicial e fi<strong>na</strong>l em que o homem se tor<strong>na</strong> exterior a si<br />

mesmo, acolhendo em sua embriaguez o que há de mais interior no<br />

766 Le Neveu de Rameau pp. 485-486.<br />

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