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A história da loucura na idade clássica

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pertencem. Aqui nos textos, lá nessas vi<strong>da</strong>s de homens, a mesma<br />

violência falava, ou a mesma amargura; visões eram certamente<br />

troca<strong>da</strong>s; linguagem e delírio se entrelaçavam. Contudo, há mais: a<br />

obra e a <strong>loucura</strong> eram, <strong>na</strong> experiência <strong>clássica</strong>, liga<strong>da</strong>s mais<br />

profun<strong>da</strong>mente e num outro nível: paradoxalmente, ali onde uma<br />

limitava a outra. Pois existia uma região onde a <strong>loucura</strong> contestava a<br />

obra, reduzia-a ironicamente, fazia de sua paisagem imaginária um<br />

mundo patológico de fantasmas; essa linguagem não era tanto obra<br />

quanto delírio. E inversamente, o delírio se subtraía à sua magra<br />

ver<strong>da</strong>de de <strong>loucura</strong>, se era confirmado como obra. Mas nessa mesma<br />

contestação não havia redução de uma por outra, mas antes<br />

(recordemos Montaigne) descoberta <strong>da</strong> incerteza central onde <strong>na</strong>sce<br />

a obra, no momento em que ela deixa de <strong>na</strong>scer, para ser<br />

ver<strong>da</strong>deiramente obra. Nesse confronto, de que Tasso ou Swift eram<br />

testemunhas, depois de Lucrécio — e que inutilmente se tentava<br />

dividir em intervalos lúcidos e em crises — descobria-se uma<br />

distância onde a ver<strong>da</strong>de mesma <strong>da</strong> obra constituía um problema: é<br />

<strong>loucura</strong> ou obra? inspiração ou fantasma? tagarelice espontânea <strong>da</strong>s<br />

palavras ou origem pura de uma linguagem? Sua ver<strong>da</strong>de deve ser<br />

levanta<strong>da</strong> antes mesmo de seu <strong>na</strong>scimento a partir <strong>da</strong> pobre ver<strong>da</strong>de<br />

dos homens, ou descoberta, bem além de sua origem, no ser que ela<br />

presume? A <strong>loucura</strong> do escritor era, para os outros, a possibili<strong>da</strong>de de<br />

ver <strong>na</strong>scer, incessantemente re<strong>na</strong>scer, nos desencorajamentos <strong>da</strong><br />

repetição e <strong>da</strong> doença, a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra.<br />

A <strong>loucura</strong> de Nietzsche, a <strong>loucura</strong> de Van Gogh ou a de Artaud<br />

pertencem a sua obra, nem mais nem menos profun<strong>da</strong>mente talvez,<br />

mas num mundo bem diferente. A freqüência no mundo moderno<br />

dessas obras que explodem <strong>na</strong> <strong>loucura</strong> sem dúvi<strong>da</strong> <strong>na</strong><strong>da</strong> prova sobre<br />

a razão desse mundo, sobre o sentido dessas obras, nem mesmo<br />

sobre as relações estabeleci<strong>da</strong>s e desfeitas entre o mundo real e os<br />

artistas que produziram as obras. Essa freqüência, no entanto, deve<br />

ser leva<strong>da</strong> a sério, como sendo a insistência de uma questão; a partir<br />

de Hölderlin e Nerval, o número dos escritores, pintores e músicos<br />

que "mergulharam" <strong>na</strong> <strong>loucura</strong> se multiplicou, mas não nos<br />

enganemos a respeito; entre a <strong>loucura</strong> e a obra, não houve<br />

acomo<strong>da</strong>ção, troca mais constante ou comunicação entre as<br />

linguagens; o confronto entre ambas é bem mais perigoso que<br />

outrora, e a contestação que hoje fazem não perdoa; o jogo delas é<br />

de vi<strong>da</strong> e de morte. A <strong>loucura</strong> de Artaud não se esgueira para os<br />

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