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A história da loucura na idade clássica

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domínio sempre aberto de uma análise objetiva, mas esta região<br />

onde <strong>na</strong>sce para o ser humano o escân<strong>da</strong>lo sempre possível de<br />

uma <strong>loucura</strong> que é ao mesmo tempo sua ver<strong>da</strong>de última e a forma<br />

de sua abolição.<br />

Todos esses fatos, essas práticas estranhas enlaça<strong>da</strong>s ao redor<br />

<strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, esses hábitos que a exaltam e ao mesmo tempo a<br />

domam, reduzindo-a à animali<strong>da</strong>de enquanto a f azem ostentar a<br />

lição <strong>da</strong> Redenção, colocam a <strong>loucura</strong> numa estranha situação com<br />

relação à totali<strong>da</strong>de do desatino. Nas casas de inter<strong>na</strong>mento, a<br />

<strong>loucura</strong> é vizinha de to<strong>da</strong>s as formas do desatino, que a envolvem<br />

e definem sua ver<strong>da</strong>de mais geral, e no entanto ela é isola<strong>da</strong>,<br />

trata<strong>da</strong> de modo singular, manifesta<strong>da</strong> <strong>na</strong>quilo que el a pode ter<br />

de único, como se, pertencendo ao desatino, ela o atravessasse<br />

incessantemente num movimento que lhe seria próprio, levando a<br />

si mesma, com suas próprias forças, a seu mais paradoxal<br />

extremo.<br />

Isso não teria muita importância para quem quisesse fazer a<br />

<strong>história</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> no estilo do positivismo. Não foi através do<br />

inter<strong>na</strong>mento dos libertinos e <strong>da</strong> obsessão com a animali<strong>da</strong>de que<br />

se tornou possível o reconhecimento progressivo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> em<br />

sua reali<strong>da</strong>de patológica; pelo con trário, é isolando-se de tudo o<br />

que podia envolvê-la no mundo moral do Classicismo que ela<br />

conseguiu definir sua ver<strong>da</strong>de médica: é isso, pelo menos, o que<br />

pressupõe todo positivismo que se vê tentado a refazer o projeto<br />

de seu próprio desenvolvimento, como se to<strong>da</strong> a <strong>história</strong> do<br />

conhecimento só atuasse através <strong>da</strong> erosão de uma objetivi<strong>da</strong>de<br />

que se descobre aos poucos em suas estruturas fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Como se não fosse justamente um postulado admitir, de saí<strong>da</strong>,<br />

que a forma <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de médica pode definir a essência e a<br />

ver<strong>da</strong>de secreta <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Talvez o fato de a <strong>loucura</strong> pertencer<br />

à patologia deva ser considerado antes como um confisco —<br />

espécie de avatar que teria sido preparado, de longa <strong>da</strong>ta, <strong>na</strong> <strong>história</strong><br />

de nossa cultura, mas não determi<strong>na</strong>do de modo algum pela<br />

própria essência <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Os parentescos que os séculos<br />

clássicos lhe atribuem com a liberti<strong>na</strong>gem, por exemplo, e que a<br />

prática do inter<strong>na</strong>mento consagra, sugerem um rosto <strong>da</strong> <strong>loucura</strong><br />

que, para nós, se perdeu inteiramente.<br />

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