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A história da loucura na idade clássica

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mundo adormecido de monstros mergulhados nessa noite de<br />

Jerônimo Bosch, que antes os manifestara uma vez. Dir-se-ia que as<br />

fortalezas do inter<strong>na</strong>mento haviam acrescido a seu papel social de<br />

segregação e purificação uma função cultural inteiramente oposta. No<br />

momento em que, <strong>na</strong> superfície <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, separavam a razão do<br />

desatino, elas conservavam <strong>na</strong>s profundezas as imagens em que uma<br />

e outra se misturavam e se confundiam. Funcio<strong>na</strong>ram como uma<br />

grande memória durante muito tempo silenciosa; mantiveram <strong>na</strong>s<br />

sombras um poder imaginário que se poderia acreditar exorcizado;<br />

erigi<strong>da</strong>s pela nova ordem <strong>clássica</strong>, conservaram, contra esta e contra<br />

o tempo, figuras proibi<strong>da</strong>s que puderam ser transmiti<strong>da</strong>s intactas do<br />

século XVI para o XIX. Nesse tempo abolido, o Brocken reúne-se a<br />

Margot la Folle <strong>na</strong> mesma paisagem imaginária, e Noirceuil, a grande<br />

len<strong>da</strong> do Marechal de Rais. O inter<strong>na</strong>mento permitiu, invocou essa<br />

resistência do imaginário.<br />

Mas as imagens liberta<strong>da</strong>s ao fi<strong>na</strong>l do século XVIII não são<br />

totalmente idênticas às que o século XVII havia tentado apagar. Na<br />

obscuri<strong>da</strong>de realizou-se um trabalho que as arrancou desse segundo<br />

plano onde a Re<strong>na</strong>scença, depois <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média, havia ido buscá-<br />

las; tomaram lugar no coração, no desejo, <strong>na</strong> imagi<strong>na</strong>ção dos<br />

homens, e em vez de manifestarem ao olhar a abrupta presença do<br />

insensato, deixam que brote a estranha contradição dos apetites<br />

humanos: a cumplici<strong>da</strong>de do desejo e do assassínio, <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de e<br />

<strong>da</strong> vontade de sofrer, <strong>da</strong> soberania e <strong>da</strong> escravidão, do insulto e <strong>da</strong><br />

humilhação. O grande conflito cósmico cujas peripécias foram<br />

revela<strong>da</strong>s pelos séculos XV e XVI deslocou-se até o ponto de tor<strong>na</strong>rse,<br />

ao fi<strong>na</strong>l do Classicismo, a dialética sem mediação do coração. O<br />

sadismo não é um nome <strong>da</strong>do enfim a uma prática tão antiga quanto<br />

Eros, é um fato cultural maciço que surgiu exatamente ao fi<strong>na</strong>l do<br />

século XVIII e que constitui uma <strong>da</strong>s maiores conversões <strong>da</strong><br />

imagi<strong>na</strong>ção ocidental: o desatino tornou-se delírio do coração,<br />

<strong>loucura</strong> do desejo, diálogo insensato do amor e <strong>da</strong> morte <strong>na</strong><br />

presunção ilimita<strong>da</strong> do apetite. O aparecimento do sadismo situa-se<br />

no momento em que o desatino, encerrado há mais de um século e<br />

reduzido ao silêncio, reaparece, não mais como figura do mundo, não<br />

mais como imagem, porém como discurso e desejo. E não é por<br />

acaso que o sadismo, como fenômeno individual que leva o nome de<br />

um homem, <strong>na</strong>sceu do inter<strong>na</strong>mento e no inter<strong>na</strong>mento; não é por<br />

acaso que to<strong>da</strong> a obra de Sade está orde<strong>na</strong><strong>da</strong> pelas imagens <strong>da</strong><br />

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