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A história da loucura na idade clássica

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Quem recebeu, em sua infância, uma educação sadia, e teve a felici<strong>da</strong>de de<br />

conservar seus princípios numa i<strong>da</strong>de mais avança<strong>da</strong>, pode prometer a si<br />

mesmo -que crime algum semelhante aos primeiros — "os <strong>da</strong>s almas<br />

gangre<strong>na</strong><strong>da</strong>s" — virá manchar sua vi<strong>da</strong>. Mas qual seria o homem<br />

suficientemente temerário a ponto de ousar asseverar que nunca, numa<br />

explosão de uma grande paixão, cometerá os segundos? Quem ousaria<br />

assegurar que jamais, <strong>na</strong> exaltação do furor e do desespero, manchará suas<br />

mãos de sangue, e talvez com o sangue mais precioso? 54<br />

Realiza-se assim uma nova divisão <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>: de um lado, uma<br />

<strong>loucura</strong> abando<strong>na</strong><strong>da</strong> à sua perversão, e que determinismo algum<br />

poderá desculpar; do outro, uma <strong>loucura</strong> projeta<strong>da</strong> <strong>na</strong> direção de um<br />

heroísmo que forma a imagem inverti<strong>da</strong>, mas complementar, dos<br />

valores burgueses. E esta, e esta ape<strong>na</strong>s, que aos poucos adquirirá<br />

direito de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia <strong>na</strong> razão ou, antes, <strong>na</strong>s intermitências <strong>da</strong> razão;<br />

é ela que terá a responsabili<strong>da</strong>de atenua<strong>da</strong>, cujo crime se tor<strong>na</strong>rá ao<br />

mesmo tempo mais humano e menos punível. Se se considera que<br />

ela é explicável, é porque ela se revela invadi<strong>da</strong> por opções morais<br />

<strong>na</strong>s quais as pessoas se reconhecem. Mas há um outro lado <strong>da</strong><br />

alie<strong>na</strong>ção, a de que Royer-Collard falava sem dúvi<strong>da</strong> em sua famosa<br />

carta a Fouché, quando evocava a "<strong>loucura</strong> do vício". Loucura que é<br />

menos que a <strong>loucura</strong>, porque absolutamente estranha ao mundo<br />

moral, porque seu delírio só fala do mal. E enquanto a primeira<br />

<strong>loucura</strong> se aproxima <strong>da</strong> razão, mistura-se a ela, deixa-se<br />

compreender a partir dela, a outra é rejeita<strong>da</strong> para as trevas<br />

exteriores; é aí que <strong>na</strong>scem essas noções estranhas que foram<br />

sucessivamente, no século XIX, a <strong>loucura</strong> moral, a degenerescência,<br />

o criminoso <strong>na</strong>to, a perversi<strong>da</strong>de: estas são outras tantas "más<br />

<strong>loucura</strong>s" que a consciência moder<strong>na</strong> não conseguiu assimilar, e que<br />

constituem o resíduo irresistível do desatino, e <strong>da</strong>s quais não se pode<br />

proteger a não ser de um modo absolutamente negativo, através <strong>da</strong><br />

recusa e <strong>da</strong> conde<strong>na</strong>ção absoluta.<br />

Nos primeiros grandes processos crimi<strong>na</strong>is julgados <strong>na</strong><br />

Revolução em audiência pública, é todo o antigo mundo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong><br />

que se vê novamente ilumi<strong>na</strong>do numa experiência quase cotidia<strong>na</strong>.<br />

Mas as normas dessa experiência ape<strong>na</strong>s não mais lhe permitem<br />

assumir todo o peso, e aquilo que o século XVI havia acolhido <strong>na</strong><br />

totali<strong>da</strong>de prolixa de um mundo imaginário, o século XIX vai cindir<br />

segundo as regras de uma percepção moral: ele reconhecerá a boa e<br />

a má <strong>loucura</strong> — aquela cuja presença confusa é aceita às margens <strong>da</strong><br />

54 Idem, pp. 90-91.<br />

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