15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

procurar superar-se e equilibrar-se, projetando-se sobre um plano <strong>da</strong><br />

objetivi<strong>da</strong>de, <strong>na</strong><strong>da</strong> conseguiu apagar os valores dramáticos desde o<br />

começo presentes em seu debate.<br />

Esse debate, no curso do tempo, retor<strong>na</strong> com obsti<strong>na</strong>ção:<br />

incansavelmente, ele põe em jogo, sob formas diversas mas com a<br />

mesma dificul<strong>da</strong>de de conciliação, as mesmas formas de consciência,<br />

sempre irredutíveis.<br />

1 . Uma consciência crítica <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, que a reconhece e a<br />

desig<strong>na</strong> sobre um fundo de coisa razoável, refleti<strong>da</strong>, moralmente<br />

sábia; consciência que se compromete inteiramente em seu<br />

julgamento, antes mesmo <strong>da</strong> elaboração de seus conceitos;<br />

consciência que não define, que denuncia. A <strong>loucura</strong> é aí senti<strong>da</strong> a<br />

partir do modo de uma oposição imediatamente experimenta<strong>da</strong>; ela<br />

explode em sua visível aberração, mostrando abun<strong>da</strong>ntemente e<br />

numa pletora de provas "que ela tem a cabeça vazia e o sentido de<br />

cabeça para baixo" 1 . Neste ponto ain<strong>da</strong> inicial, a consciência <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong> está segura de si mesma, isto é, segura de não estar louca.<br />

Mas ela se precipitou, sem medi<strong>da</strong> nem conceito, no próprio interior<br />

<strong>da</strong> diferença, no ponto mais acentuado <strong>da</strong> oposição, no âmago desse<br />

conflito onde <strong>loucura</strong> e não-<strong>loucura</strong> trocam sua linguagem mais<br />

primitiva; e a oposição se tor<strong>na</strong> reversível: nesta ausência de ponto<br />

fixo, pode ser que a <strong>loucura</strong> seja razão, e que a consciência <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong> seja presença secreta, estratagema <strong>da</strong> própria <strong>loucura</strong>.<br />

Ceux qui pour voyageur s'embarquent dessus l'eau Voient aller la terre et non<br />

pas leur vaisseau 2 .<br />

Mas como não existe para a <strong>loucura</strong> a certeza de estar louca, há<br />

aí uma <strong>loucura</strong> mais geral que to<strong>da</strong>s as outras e que abriga, pela<br />

mesma razão que a <strong>loucura</strong>, a mais obsti<strong>na</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong>s sabedorias.<br />

Mais plus tant je me lime et plus je me rabote Je crois qu'à mon avir tout le<br />

monde radote 3 .<br />

Sabedoria frágil, porém suprema. Ela pressupõe, exige o eterno<br />

desdobramento <strong>da</strong> consciência <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, sua absorção pela <strong>loucura</strong><br />

e sua nova emergência. Ela se apóia em valores ou, melhor, sobre o<br />

1 RÉGNIER, Satire XIV. Oeuvres complètes, ed. Railaud v. 9.<br />

2 RÉGNIER, idem, v. 13-14. (Aqueles que para viajar embarcam sobre as<br />

águas/Vêem an<strong>da</strong>r a terra e não sua <strong>na</strong>u.)<br />

3 Idem, v. 7-8. (Quanto mais me limo e mais me aplaino/Creio que a meu ver todo<br />

mundo desati<strong>na</strong>.)<br />

184

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!