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A história da loucura na idade clássica

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solo para nosso conhecimento "científico" <strong>da</strong> doença mental. Através<br />

desse distanciamento, através dessa dessacralização, a <strong>loucura</strong><br />

atinge uma aparência de neutrali<strong>da</strong>de já comprometi<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do que só<br />

é alcança<strong>da</strong> nos propósitos iniciais de uma conde<strong>na</strong>ção.<br />

Mas esta nova uni<strong>da</strong>de não é decisiva ape<strong>na</strong>s para a marcha do<br />

conhecimento; ela teve sua importância <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que constituiu<br />

a imagem de uma certa "existência de desatino" que tinha, ao lado<br />

do castigo, seu correlato <strong>na</strong>quilo que se poderia chamar de<br />

"existência correcio<strong>na</strong>l". A prática do inter<strong>na</strong>mento e a existência do<br />

homem que será inter<strong>na</strong>do não são mais separáveis. Elas se exigem<br />

uma à outra por uma espécie de fascínio recíproco que suscita o<br />

movimento próprio <strong>da</strong> existência correcio<strong>na</strong>l: isto é, um certo estilo<br />

que já se possui antes do inter<strong>na</strong>mento e que fi<strong>na</strong>lmente o tor<strong>na</strong><br />

necessário. Não é exatamente a existência de criminosos, nem a de<br />

doentes; mas assim como acontece ao homem moderno refugiar-se<br />

<strong>na</strong> crimi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de ou <strong>na</strong> neurose, é provável que essa existência de<br />

desatino sancio<strong>na</strong><strong>da</strong> através do inter<strong>na</strong>mento tenha exercido sobre o<br />

homem clássico um poder de fascínio; e é ela sem dúvi<strong>da</strong> que<br />

vagamente percebemos nessa espécie de fisionomia comum que é<br />

preciso reconhecer nos rostos de todos os internos, de todos os que<br />

foram encerrados "por desarranjo em seus costumes e em seu<br />

espírito", como dizem os textos numa enigmática confusão. Nosso<br />

saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas<br />

ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um<br />

mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à<br />

doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É<br />

desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos,<br />

dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia ape<strong>na</strong>s<br />

uma certa maneira, bastante pessoal e varia<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> indivíduo, de<br />

modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o<br />

desatino 63 . Nós, os modernos, começamos a nos <strong>da</strong>r conta de que,<br />

sob a <strong>loucura</strong>, sob a neurose, sob o crime, sob as i<strong>na</strong><strong>da</strong>ptações<br />

sociais, corre uma espécie de experiência comum <strong>da</strong> angústia.<br />

Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do<br />

mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que<br />

63 Pode-se descrever as linhas gerais <strong>da</strong> existência correcio<strong>na</strong>l a partir de<br />

biografias como a de Henri-Louis de Loménie (cf. JACOBÊ, Un internement<br />

sous le grand roi, Paris, 1929) ou a do abade Blache, cujo dossiê está no<br />

Arse<strong>na</strong>l, ms. 10526: cf. 10588, 10592, 10599, 10614.<br />

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