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A história da loucura na idade clássica

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Mas esta toma<strong>da</strong> de consciência de uma razão sempre<br />

comprometi<strong>da</strong> não tor<strong>na</strong> inútil a procura de uma ordem; mas de uma<br />

ordem moral, uma medi<strong>da</strong>, um equilíbrio de paixões que assegure a<br />

felici<strong>da</strong>de através <strong>da</strong> polícia do coração. Ora, o século XVII rompe<br />

essa uni<strong>da</strong>de ao realizar a grande cesura essencial entre a razão e o<br />

desatino — <strong>da</strong> qual o inter<strong>na</strong>mento é ape<strong>na</strong>s a expressão<br />

institucio<strong>na</strong>l. A "liberti<strong>na</strong>gem" do começo do século, que vivia <strong>da</strong><br />

experiência inquieta <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de entre ambos e freqüentemente<br />

<strong>da</strong> confusão entre eles, por isso mesmo desaparece; somente<br />

subsistirá, até o fim do século XVIII, sob duas formas estranhas uma<br />

à outra: de um lado, um esforço <strong>da</strong> razão para formular-se num<br />

racio<strong>na</strong>lismo onde to<strong>da</strong> insani<strong>da</strong>de assume o aspecto do irracio<strong>na</strong>l; e<br />

de outro lado, um desatino do coração que dobra os discursos <strong>da</strong><br />

razão aos ditames de sua lógica desati<strong>na</strong><strong>da</strong>. A ilumi<strong>na</strong>ção e a<br />

liberti<strong>na</strong>gem justapuseram no século XVIII, mas sem se confundir. A<br />

divisão simboliza<strong>da</strong> pelo inter<strong>na</strong>mento tor<strong>na</strong>va sua comunicação<br />

difícil. A liberti<strong>na</strong>gem, <strong>na</strong> época em que triunfavam as luzes, viveu<br />

uma existência obscura, traí<strong>da</strong> e acua<strong>da</strong>, quase informulável antes de<br />

Sade ter escrito Justine e especialmente Juliette como formidável<br />

panfleto contra os "filósofos" e como expressão primeira de uma<br />

experiência que, ao longo do século XVIII, só havia recebido um<br />

estatuto de tipo policial entre os muros do inter<strong>na</strong>mento.<br />

A liberti<strong>na</strong>gem deslizou agora para o lado <strong>da</strong> insani<strong>da</strong>de. Fora de<br />

um certo uso superficial <strong>da</strong> palavra, não há no século XVIII uma<br />

filosofia coerente <strong>da</strong> liberti<strong>na</strong>gem; esse termo só será encontrado e<br />

utilizado de modo sistemático nos registros dos inter<strong>na</strong>mentos. E o<br />

que ele então desig<strong>na</strong> não é exatamente o livre pensamento, nem<br />

exatamente a liber<strong>da</strong>de de costumes, mas, pelo contrário, um estado<br />

de servidão no qual a razão se tor<strong>na</strong> escrava dos desejos e servente<br />

do coração. Na<strong>da</strong> mais afastado dessa nova liberti<strong>na</strong>gem que a livre<br />

escolha de uma razão que exami<strong>na</strong>; tudo nela fala, pelo contrário,<br />

<strong>da</strong>s sujeições <strong>da</strong> razão: à carne, ao dinheiro, às paixões. E quando<br />

Sade, pela primeira vez no século XVIII, tentará uma teoria coerente<br />

dessa liberti<strong>na</strong>gem cuja existência até então permanecera meio<br />

secreta, é exatamente essa escravidão que será exalta<strong>da</strong>. O libertino<br />

que entra <strong>na</strong> Socie<strong>da</strong>de dos Amigos do Crime deve comprometer-se a<br />

cometer to<strong>da</strong>s as ações, "mesmo as mais execráveis... ao mais leve<br />

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