15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

2. A Grande Inter<strong>na</strong>ção<br />

Compelle intrare.<br />

A <strong>loucura</strong>, cujas vozes a Re<strong>na</strong>scença acaba de libertar, cuja<br />

violência porém ela já dominou, vai ser reduzi<strong>da</strong> ao silêncio pela era<br />

<strong>clássica</strong> através de um estranho golpe de força.<br />

No caminho <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, Descartes encontra a <strong>loucura</strong> ao lado do<br />

sonho e de to<strong>da</strong>s as formas de erro. Será que essa possibili<strong>da</strong>de de<br />

ser louco não faz com que ele corra o risco de ver-se despojado <strong>da</strong><br />

posse de seu próprio corpo, assim como o mundo exterior pode<br />

refugiar-se no erro, ou a consciência adormecer no sonho?<br />

Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos que<br />

me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e ofuscado<br />

pelos negros vapores <strong>da</strong> bílis, que eles asseguram constantemente serem reis<br />

quando <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de são muito pobres, que estão vestidos de ouro e púrpura<br />

quando estão completamente nus, que imagi<strong>na</strong>m serem bilhas ou ter um<br />

corpo de vidro? 1<br />

Mas Descartes não evita o perigo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> do mesmo modo<br />

como contor<strong>na</strong> a eventuali<strong>da</strong>de do sonho ou do erro. Por mais<br />

enga<strong>na</strong>dores que os sentidos sejam, eles <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de não podem<br />

alterar <strong>na</strong><strong>da</strong> além <strong>da</strong>s "coisas muito pouco sensíveis e muito<br />

distantes"; a força de suas ilusões deixa sempre um resíduo de<br />

ver<strong>da</strong>de, "que estou aqui, perto <strong>da</strong> lareira, vestido com uma robe de<br />

chambre" 2 . Quanto ao sonho, tal como a imagi<strong>na</strong>ção dos pintores, ele<br />

pode representar "sereias ou sátiros através de figuras bizarras e<br />

extraordinárias"; mas não pode nem criar nem compor, por si só,<br />

essas coisas "mais simples e mais universais" cuja combi<strong>na</strong>ção tor<strong>na</strong><br />

possíveis as imagens fantásticas: "A <strong>na</strong>tureza corpórea e sua<br />

extensibili<strong>da</strong>de pertence a esse gênero de coisas." Estas são tão<br />

pouco fingi<strong>da</strong>s que asseguram aos sonhos sua verossimilhança —<br />

inevitáveis marcas de uma ver<strong>da</strong>de que o sonho não chega a<br />

comprometer. Nem o sono povoado de imagens, nem a clara<br />

consciência de que os sentidos se iludem não podem levar a dúvi<strong>da</strong><br />

ao ponto extremo de sua universali<strong>da</strong>de; admitamos que os olhos nos<br />

1 DESCARTES, Méditations, I, Oeuvres, Pléiade, p. 268.<br />

2 Ibidem.<br />

52

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!