15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

esses recantos de sombra que assombram o dia sem se deixar<br />

reduzir, e que só desaparecerão <strong>na</strong> nova noite <strong>da</strong> morte. E essas<br />

noites fantásticas, por sua vez, assombra<strong>da</strong>s por uma luz que é como<br />

o reflexo infer<strong>na</strong>l do dia: incêndio de Tróia, as tochas dos pretorianos,<br />

luz páli<strong>da</strong> do sonho. Na tragédia <strong>clássica</strong>, dia e noite dispõem-se<br />

como num espelho, refletindo-se indefini<strong>da</strong>mente e <strong>da</strong>ndo a esse par<br />

simples uma repenti<strong>na</strong> profundi<strong>da</strong>de que envolve, num único gesto,<br />

to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> do homem e sua morte. Do mesmo modo, em Madeleine<br />

au miroir a sombra e a luz se defrontam, simultaneamente dividindo<br />

e unindo um rosto e seu reflexo, um crânio e seu rosto, uma vigília e<br />

um silêncio. E em Image-Saint Alexis o pajem com a tocha descobre<br />

<strong>na</strong> penumbra <strong>da</strong> abóbo<strong>da</strong> aquele que foi seu mestre; um jovem<br />

brilhante e sério encontra to<strong>da</strong> a miséria dos homens; uma criança<br />

descobre a morte.<br />

Diante <strong>da</strong> tragédia e de sua linguagem hierática, o murmúrio<br />

confuso <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Aqui, mais uma vez, foi viola<strong>da</strong> a grande lei <strong>da</strong><br />

divisão; sombra e luz misturam-se no furor <strong>da</strong> demência, como <strong>na</strong><br />

desordem trágica. Porém de modo diferente. A perso<strong>na</strong>gem trágica<br />

via <strong>na</strong> noite como que a ver<strong>da</strong>de sombria do dia; a noite de Tróia era<br />

a ver<strong>da</strong>de de Andrômaca, assim como a noite de Atalie pressagiava a<br />

ver<strong>da</strong>de do dia já a caminho. A noite, paradoxalmente, desven<strong>da</strong>va;<br />

era o dia mais profundo do ser. O louco, pelo contrário, encontra no<br />

dia ape<strong>na</strong>s a inconsistência <strong>da</strong>s figuras <strong>da</strong> noite; deixa que a luz se<br />

obscureça com to<strong>da</strong>s as ilusões do sonho, seu dia é ape<strong>na</strong>s a noite<br />

mais superficial <strong>da</strong> aparência. É nesta medi<strong>da</strong> que o homem trágico<br />

está, mais que qualquer outro, comprometido no ser e é portador de<br />

sua ver<strong>da</strong>de, uma vez que, como Fedra, desven<strong>da</strong> sob o impiedoso<br />

sol todos os segredos <strong>da</strong> noite, enquanto o louco é inteiramente<br />

excluído do ser. E como poderia deixar de ser assim, ele que atribui o<br />

reflexo ilusório dos dias ao não-ser <strong>da</strong> noite?<br />

Compreende-se que o herói trágico — diversamente <strong>da</strong><br />

perso<strong>na</strong>gem barroca <strong>da</strong> época anterior — nunca pode ser um louco e<br />

que, inversamente, a <strong>loucura</strong> não possa trazer em si mesma esses<br />

valores <strong>da</strong> tragédia, que conhecemos segundo Nietzsche e Artaud. Na<br />

era <strong>clássica</strong>, o homem-tragédia e o homem-<strong>loucura</strong> se defrontam<br />

sem diálogo possível, sem uma linguagem comum, pois um só sabe<br />

pronunciar as palavras decisivas do ser onde se encontram, por um<br />

breve instante, a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luz e a profundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> noite, enquanto<br />

272

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!