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A história da loucura na idade clássica

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desejo de suas paixões" 59 . O libertino deve colocar-se no próprio<br />

âmago dessas servidões; está convencido de que "os homens não são<br />

livres; acorrentados pelas leis <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza, são todos escravos dessas<br />

leis primeiras" 60 . A liberti<strong>na</strong>gem, no século XVIII, é o uso <strong>da</strong> razão<br />

alie<strong>na</strong><strong>da</strong> no desatino do coração 61 . E, nessa medi<strong>da</strong>, não há nenhum<br />

paradoxo em deixar que se aproximem, como o fizera o inter<strong>na</strong>mento<br />

clássico, os "libertinos" <strong>da</strong>queles que professem o erro religioso:<br />

protestantes ou inventores de qualquer outro sistema novo. Colocamnos<br />

sob o mesmo regime e tratam-nos do mesmo modo, pois nuns e<br />

noutros a recusa à ver<strong>da</strong>de deriva do mesmo abandono moral. Essa<br />

mulher de Dieppe de que fala d'Argenson é protestante ou liberti<strong>na</strong>?<br />

Não posso duvi<strong>da</strong>r de que essa mulher que se vangloria de sua teimosia não é<br />

uma pessoa muito ruim. Mas, como os fatos que lhe são censurados não são<br />

suscetíveis de uma instrução judiciária, parece-me mais justo e conveniente<br />

encerrá-la por algum tempo no Hospital Geral, a fim de que lá possa<br />

encontrar tanto a punição por suas faltas como o desejo <strong>da</strong> conversão 62 .<br />

Deste modo, a insani<strong>da</strong>de anexa para si um novo domínio:<br />

aquele no qual a razão se sujeita aos desejos do coração e seu uso se<br />

aparenta aos desregramentos <strong>da</strong> imorali<strong>da</strong>de. Os livres discursos <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong> vão aparecer <strong>na</strong> escravidão <strong>da</strong>s paixões; e é aí, nessa citação<br />

moral, que vai <strong>na</strong>scer o grande tema de uma <strong>loucura</strong> que seguiria<br />

não o livre caminho de suas fantasias, mas a linha de coação do<br />

coração. Durante muito tempo, o insano tinha ostentado as marcas<br />

do inumano: descobre-se agora um desatino bastante próximo do<br />

homem, demasiado fiel às determi<strong>na</strong>ções de sua <strong>na</strong>tureza, um<br />

desatino que seria como que o abandono do homem a si mesmo.<br />

Sub-repticiamente ela tende a tor<strong>na</strong>r-se aquilo que será para o<br />

evolucionismo do século XIX, isto é, a ver<strong>da</strong>de do homem, vista<br />

porém sob o ângulo de seus afetos, seus desejos, <strong>da</strong>s formas mais<br />

rudes e constrangedoras de sua <strong>na</strong>tureza. Ela se inscreve nessas<br />

regiões obscuras em que a conduta moral ain<strong>da</strong> não pode dirigir o<br />

59 Justine, ed. 1797, VII, p. 37.<br />

60 Idem, p. 17.<br />

61 Tem-se um exemplo de inter<strong>na</strong>mento por liberti<strong>na</strong>gem no celebre caso do abade<br />

de Montcrif: Ele é muito suntuoso em coches, cavalos, comi<strong>da</strong>, bilhetes de<br />

loteria, prédios, o que o fez contrair 70 000 libras de dívi<strong>da</strong>... Gosta muito do<br />

confessionário e apaixo<strong>na</strong>-se pela orientação <strong>da</strong>s mulheres, a ponto de<br />

provocar suspeitas em alguns maridos... E o homem mais processado, tem<br />

vários procuradores nos tribu<strong>na</strong>is... Infelizmente isso é o bastante para<br />

evidenciar desarranjo geral de seu espírito. com os miolos inteiramente<br />

virados». Arse<strong>na</strong>l ms. 11811. Cf. também 11498, 11537, 11765, 12010,<br />

12499.<br />

62 Arse<strong>na</strong>l, ms. 12692.<br />

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