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A história da loucura na idade clássica

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com os velhos mundos dos encantamentos, <strong>da</strong>s cavalga<strong>da</strong>s<br />

fantásticas, <strong>da</strong>s feiticeiras empoleira<strong>da</strong>s em galhos de árvores<br />

mortas? O monstro que sopra seus segredos nos ouvidos do Monge<br />

não é parente do gnomo que fasci<strong>na</strong>va o Santo Antônio de Bosch?<br />

Num certo sentido, Goya redescobre essas grandes imagens<br />

esqueci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>. Mas elas são outras para ele, e seu prestígio,<br />

que recobre to<strong>da</strong> sua obra posterior, deriva de uma outra força. Em<br />

Bosch ou em Brueghel, essas formas <strong>na</strong>scem do próprio mundo;<br />

pelas fissuras de uma estranha poesia, elas sobem <strong>da</strong>s pedras e <strong>da</strong>s<br />

plantas, surgem de um bocejo animal; to<strong>da</strong> a cumplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

<strong>na</strong>tureza não era demais para a formação de sua ron<strong>da</strong>. As formas de<br />

Goya <strong>na</strong>scem do <strong>na</strong><strong>da</strong>: não têm base, no duplo sentido em que só se<br />

destacam sobre a mais monóto<strong>na</strong> <strong>da</strong>s noites e que <strong>na</strong><strong>da</strong> pode<br />

determi<strong>na</strong>r sua origem, seu fim e sua <strong>na</strong>tureza. Os Disparatados não<br />

têm paisagem, nem muros, nem cenário — e esta é mais uma<br />

diferença em relação aos Caprichos; não há uma estrela <strong>na</strong> noite<br />

desses grandes morcegos humanos vista <strong>na</strong> Maneira de Voar. O galho<br />

em cima do qual tagarelam as feiticeiras está sustentado por qual<br />

árvore? Está no ar? Na direção de que sabá e de qual clareira? Na<strong>da</strong><br />

em tudo isso nos fala de um mundo, nem deste nem do outro. Tratase<br />

bem desse Sono <strong>da</strong> Razão do qual Goya, já em 1797, fazia a<br />

primeira figura do "idioma universal"; trata-se de uma noite que é<br />

sem dúvi<strong>da</strong> a do desatino clássico, esta tríplice noite onde Orestes se<br />

encerrava. Mas nessa noite o homem comunica com aquilo que há de<br />

mais profundo nele, e de mais solitário. O deserto de Santo Antônio<br />

de Bosch estava infinitamente povoado, e ain<strong>da</strong> que tivesse saído de<br />

sua imagi<strong>na</strong>ção, a paisagem que atravessa Margot, a Louca estava<br />

marca<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> uma linguagem huma<strong>na</strong>. O Monge de Goya, com<br />

essa fera mor<strong>na</strong> em suas costas, as patas sobre seus ombros e essa<br />

boca que arqueja em seu ouvido, permanece sozinho: nenhum<br />

segredo é dito. Está presente ape<strong>na</strong>s a mais interior e ao mesmo<br />

tempo a mais selvagemente livre <strong>da</strong>s forças: a que divide os corpos<br />

no Grande Disparatado, a que se desencadeia e fura os olhos <strong>na</strong><br />

Loucura furiosa. A partir <strong>da</strong>í, os próprios rostos se decompõem: não é<br />

mais a <strong>loucura</strong> dos Caprichos, que faziam máscaras mais ver<strong>da</strong>deiras<br />

que a ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s figuras; é uma <strong>loucura</strong> abaixo <strong>da</strong> máscara, uma<br />

<strong>loucura</strong> que morde as faces, corrói os traços; não há mais olhos nem<br />

bocas, mas olhares que vêm do <strong>na</strong><strong>da</strong> e se fixam no <strong>na</strong><strong>da</strong> (como <strong>na</strong><br />

Assembléia <strong>da</strong>s Feiticeiras); ou gritos que saem de buracos negros<br />

(como <strong>na</strong> Peregri<strong>na</strong>ção de São Isidro). A <strong>loucura</strong> tornou-se, no<br />

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