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A história da loucura na idade clássica

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quadro fantástico <strong>da</strong> obsti<strong>na</strong>ção, dos corpos torturados e <strong>da</strong> dor. Eis a<br />

imagem sobrecarrega<strong>da</strong> de sentidos suplementares, e obriga<strong>da</strong> a<br />

entregá-los todos. Mas o sonho, o insensato, o destino podem<br />

esgueirar-se para dentro desse excesso de sentido. As figuras<br />

simbólicas facilmente se tor<strong>na</strong>m silhuetas de pesadelo. Disso é<br />

testemunha essa velha imagem <strong>da</strong> sabedoria, tão freqüentemente<br />

traduzi<strong>da</strong>, <strong>na</strong>s gravuras alemãs, por um pássaro de pescoço comprido<br />

cujos pensamentos, ao se elevarem lentamente do coração à cabeça,<br />

têm tempo para serem pesados e refletidos 60 ; símbolo cujos valores<br />

se entorpecem por serem demasiado acentuados: o longo caminho de<br />

reflexão tor<strong>na</strong>-se, <strong>na</strong> imagem, o alambique de um saber sutil,<br />

instrumento que destila as quintessências. O pescoço do Gutemensch<br />

alonga-se indefini<strong>da</strong>mente a fim de melhor configurar, além <strong>da</strong><br />

sabedoria, to<strong>da</strong>s as mediações reais do saber; e o homem simbólico<br />

tor<strong>na</strong>-se um pássaro fantástico cujo pescoço desmesurado se dobra<br />

mil vezes sobre si mesmo — ser insensato, a meio caminho entre o<br />

animal e a coisa, mais próximo dos prestígios próprios à imagem que<br />

do rigor de um sentido. Esta sabedoria simbólica é prisioneira <strong>da</strong>s<br />

<strong>loucura</strong>s do sonho.<br />

Conversão fun<strong>da</strong>mental do mundo <strong>da</strong>s imagens: a coação de um<br />

sentido multiplicado o libera do orde<strong>na</strong>mento <strong>da</strong>s formas. Tantas<br />

significações diversas se inserem sob a superfície <strong>da</strong> imagem que ela<br />

passa a apresentar ape<strong>na</strong>s uma face enigmática. E seu poder não é<br />

mais o do ensi<strong>na</strong>mento mas o do fascínio. Característica é a evolução<br />

do grylle, do famoso grylle, já familiar <strong>na</strong> I<strong>da</strong>de Média, o dos saltérios<br />

ingleses, o de Chartres e o de Bourges. Ele mostrava como, no<br />

homem tomado pelo desejo, a alma se tor<strong>na</strong>va prisioneira do animal;<br />

essas caras grotescas feitas no ventre dos monstros pertenciam ao<br />

mundo <strong>da</strong> grande metáfora platônica e denunciavam o aviltamento<br />

do espírito <strong>na</strong> <strong>loucura</strong> do pecado. Mas eis que no século XV, o grylle,<br />

imagem <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> huma<strong>na</strong>, tor<strong>na</strong>-se uma <strong>da</strong>s figuras privilegia<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>s inúmeras Tentações. O que assalta a tranqüili<strong>da</strong>de do ermitão<br />

não são os objetos do desejo; são essas formas dementes,<br />

encerra<strong>da</strong>s num segredo, que subiram de um sonho e ali<br />

permanecem, à superfície de um mundo, silenciosas e furtivas. Na<br />

Tentação de Lisboa, diante de Santo Antônio, senta-se uma dessas<br />

figuras <strong>na</strong>sci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, de sua solidão, de sua penitência, de<br />

suas privações; um frágil sorriso ilumi<strong>na</strong> esse rosto sem corpo, pura<br />

presença <strong>da</strong> inquietação sob as espécies de um esgar ágil. Ora, é<br />

60 Cf. C.V. LANGLOIS, La con<strong>na</strong>irsance de la <strong>na</strong>ture et du monde au Moyen Age,<br />

Paris, 1911, p. 243.<br />

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