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A história da loucura na idade clássica

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sensível que as correntes e a cela; sente-se humilhado pelo abandono e<br />

pelo novo isolamento em meio de sua ple<strong>na</strong> liber<strong>da</strong>de. Fi<strong>na</strong>lmente, após<br />

longas hesitações, de vontade própria se mistura à socie<strong>da</strong>de dos outros<br />

doentes; a partir de então, retor<strong>na</strong> a idéias mais sensatas e mais justas 58 .<br />

A libertação assume aqui um sentido paradoxal. A cela, as<br />

correntes, o espetáculo contínuo, os sarcasmos constituíam para o<br />

delírio do doente uma espécie de elemento de sua liber<strong>da</strong>de.<br />

Reconhecido através desse comportamento, e fasci<strong>na</strong>do do exterior<br />

por tantas cumplici<strong>da</strong>des, não podia ser desalojado de sua ver<strong>da</strong>de<br />

imediata. Mas as cadeias que caem, essa indiferença e o mutismo de<br />

todos o aprisio<strong>na</strong>m no uso restrito de uma liber<strong>da</strong>de vazia; vê-se<br />

entregue a uma ver<strong>da</strong>de não reconheci<strong>da</strong> que manifestará<br />

inutilmente, uma vez que não mais será observa<strong>da</strong>, e <strong>da</strong> qual não<br />

poderá extrair motivos de exaltação, <strong>da</strong>do que nem mesmo é mais<br />

humilha<strong>da</strong>. É o próprio louco, e não sua projeção no delírio, que<br />

agora será humilhado: a coação física é substituí<strong>da</strong> por uma liber<strong>da</strong>de<br />

que a todo momento é limita<strong>da</strong> pela solidão; o diálogo do delírio e <strong>da</strong><br />

ofensa é substituído pelo monólogo de uma linguagem que se esgota<br />

no silêncio dos outros; todo o cortejo <strong>da</strong> presunção e do ultraje, <strong>na</strong><br />

indiferença. A partir de então, aprisio<strong>na</strong>do de um modo mais real do<br />

que o poderia ser <strong>na</strong> cela ou pelas correntes, prisioneiro de <strong>na</strong><strong>da</strong><br />

além de si mesmo, o doente é apanhado num relacio<strong>na</strong>mento consigo<br />

mesmo que pertence à esfera <strong>da</strong> falta, e num não-relacio<strong>na</strong>mento<br />

com os outros que é <strong>da</strong> esfera <strong>da</strong> vergonha. Os outros são<br />

inocentados, não são mais perseguidores; a culpabili<strong>da</strong>de se desloca<br />

para o interior, mostrando ao louco que estava fasci<strong>na</strong>do ape<strong>na</strong>s pela<br />

própria presunção; os rostos inimigos se apagam, não mais sente a<br />

presença deles como um olhar, mas como recusa de atenção, como<br />

olhar desviado; os outros não passam para ele, agora, de um limite<br />

que recua incessantemente à medi<strong>da</strong> que ele avança. Libertado de<br />

suas correntes, está agora acorrentado pela virtude do silêncio, pela<br />

falta e pela vergonha. Sentia-se punido, e via o signo de sua<br />

inocência; livre de to<strong>da</strong> punição física, é necessário que ele se sinta<br />

culpado. Seu suplício era sua glória, sua libertação deverá humilhá-lo.<br />

Comparado com o diálogo incessante entre a razão e a <strong>loucura</strong><br />

durante a Re<strong>na</strong>scença, o inter<strong>na</strong>mento clássico tinha sido posto em<br />

silêncio. Mas este não era absoluto: a linguagem era ali antes<br />

engaja<strong>da</strong> <strong>na</strong>s coisas do que realmente suprimi<strong>da</strong>. O inter<strong>na</strong>mento, as<br />

58 S. PINEL, Traité du régime sanitaire des aliénés, p. 63.<br />

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