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A história da loucura na idade clássica

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constantes intercâmbios.<br />

O tema do fim do mundo, <strong>da</strong> grande violência fi<strong>na</strong>l, não é<br />

estranho à experiência crítica <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> tal como é ela formula<strong>da</strong> <strong>na</strong><br />

literatura. Ronsard evoca esses tempos últimos que se debatem no<br />

grande vazio <strong>da</strong> Razão:<br />

Au ciel est revolée et Justice et Raison,<br />

Et en leur place, hélas, règne le brigan<strong>da</strong>ge,<br />

La haine, la rancoeur, le sang et le car<strong>na</strong>ge 79 .<br />

Ao fi<strong>na</strong>l do poema de Brant, todo um capítulo é dedicado ao<br />

tema apocalíptico do Anticristo: uma imensa tempestade arrasta o<br />

<strong>na</strong>vio dos loucos numa corri<strong>da</strong> insa<strong>na</strong> que se identifica com a<br />

catástrofe dos mundos 80 . Inversamente, muitas figuras <strong>da</strong> retórica<br />

moral são ilustra<strong>da</strong>s, de maneira bastante direta, entre as imagens<br />

cósmicas <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>: não nos esqueçamos do famoso médico de<br />

Bosch, ain<strong>da</strong> mais louco que aquele a quem pretende curar — com<br />

to<strong>da</strong> sua falsa ciência não tendo feito outra coisa senão depositar<br />

sobre ele os piores despojos de uma <strong>loucura</strong> que todos podem ver,<br />

menos ele. Para seus contemporâneos e para as gerações que se<br />

seguirão, é uma lição de moral o que proporcio<strong>na</strong>m as obras de<br />

Bosch: to<strong>da</strong>s essas figuras que <strong>na</strong>scem do mundo não denunciam, <strong>da</strong><br />

mesma forma, os monstros do coração?<br />

A diferença que existe entre as pinturas desse homem e as dos outros<br />

consiste em que os outros mais freqüentemente procuram pintar o homem tal<br />

como ele surge do exterior, enquanto Bosch tem a audácia de pintá-los tais<br />

como são em seu interior.<br />

E o símbolo desta sabedoria denunciadora, desta ironia inquieta,<br />

o mesmo comentador do princípio do século XVII pensa ver expresso,<br />

em quase todos os quadros de Bosch, <strong>na</strong> dupla figura do archote (luz<br />

do pensamento em vigília) e do mocho, cujo estranho olhar fixo<br />

"eleva-se <strong>na</strong> calma e no silêncio <strong>da</strong> noite, consumindo mais óleo que<br />

vinho" 81 . Apesar de tantas interferências ain<strong>da</strong> visíveis, a divisão já<br />

está feita; entre as duas formas de experiência <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, a<br />

distância não mais deixará de aumentar. As figuras <strong>da</strong> visão cósmica<br />

e os movimentos <strong>da</strong> reflexão moral, o elemento trágico e o elemento<br />

crítico irão doravante separar-se ca<strong>da</strong> vez mais, abrindo, <strong>na</strong> uni<strong>da</strong>de<br />

79 RONSARD, Discours des Misères de ce temps (Aos céus subiram a Justiça e a<br />

Razão/E em seu lugar, infelizmente, impera o banditismo/O ódio, o rancor, o<br />

sangue e a carnifici<strong>na</strong>).<br />

80 BRANT, loc. cit., canto CXVII, particularmente os versos 21-22 e 57 e ..9, que<br />

fazem referência precisa ao Apocalipse, versículos 13 e 20.<br />

81 JOSEPH DE SIGUENÇA, Tercera parte de la Historia de la Orden de S. Geronimo,<br />

1605, p. 837. Citado por TOLNAY, Hieronimus Bosch. Apêndice, p. 76.<br />

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