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A história da loucura na idade clássica

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para devolver, pela expressão, a embriaguez sensível do mundo, o<br />

jogo premente <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> aparência, o delírio permanece<br />

ironicamente isolado: o sofrimento <strong>da</strong> fome permanece como uma<br />

insondável dor.<br />

Ficando meio <strong>na</strong> sombra, esta experiência do desatino manteve-<br />

se abafa<strong>da</strong> desde o Neveu de Rameau até Raymond Roussel e<br />

Antonin Artaud. Mas se se trata de manifestar sua continui<strong>da</strong>de, é<br />

necessário libertá-la <strong>da</strong>s noções patológicas de que foi recoberta. O<br />

retorno ao imediato <strong>na</strong>s últimas poesias de Hõlderlin, a sacralização<br />

do sensível em Nerval, só podem oferecer um sentido alterado e<br />

superficial se os compreendermos a partir de uma concepção<br />

positivista <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>: seu ver<strong>da</strong>deiro sentido deve ser procurado<br />

nesse momento do desatino em que estão colocados. Pois é do<br />

próprio centro dessa experiência do desatino, que é sua condição<br />

concreta de possibili<strong>da</strong>de, que se podem entender os dois<br />

movimentos de conversão poética e de evolução psicológica: não<br />

estão ligados um ao outro por uma relação de causa e efeito, não se<br />

desenvolvem sobre o modo complementar, nem o inverso. Repousam<br />

ambos sobre um mesmo fundo, o do desatino tragado e do qual a<br />

experiência do Neveu de Rameau já nos mostrou que comportava<br />

tanto a embriaguez do sensível quanto o fascínio do imediato e a<br />

dolorosa ironia em que se anuncia a solidão do delírio. Isso não<br />

depende <strong>da</strong> <strong>na</strong>tureza <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, mas <strong>da</strong> essência do desatino. Se<br />

essa essência pôde passar despercebi<strong>da</strong>, não é ape<strong>na</strong>s porque está<br />

oculta, mas porque se perde em tudo aquilo que pode levá-la para a<br />

luz do dia. Pois — e esse é talvez um dos traços fun<strong>da</strong>mentais de<br />

nossa cultura — não é possível manter-se de um modo decisivo e<br />

indefinido nessa distância do desatino. Ela deve ser esqueci<strong>da</strong> e<br />

aboli<strong>da</strong>, tão logo avalia<strong>da</strong> <strong>na</strong> vertigem do sensível e <strong>na</strong> reclusão <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong>. Van Gogh e Nietzsche, por sua vez, foram testemunhas<br />

disso: fasci<strong>na</strong>dos pelo delírio do real, <strong>da</strong> aparência cintilante, do<br />

tempo abolido e absolutamente reencontrado <strong>na</strong> justiça <strong>da</strong> luz,<br />

confiscados pela imóvel solidez <strong>da</strong> mais frágil aparência, foram por<br />

isso rigorosamente excluídos e encerrados no interior de uma dor<br />

sem correspondência e que figurava, não ape<strong>na</strong>s para os outros mas<br />

para eles mesmos, em sua ver<strong>da</strong>de transforma<strong>da</strong> em imediata<br />

certeza, a <strong>loucura</strong>. O momento do Ja-sagen no relâmpago do sensível<br />

é a própria retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> para as sombras.<br />

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