15.10.2013 Views

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

A história da loucura na idade clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

elacio<strong>na</strong>mento que o homem mantém consigo mesmo. A<br />

personificação mitológica <strong>da</strong> Loucura é, em Erasmo, ape<strong>na</strong>s uni<br />

artifício literário. De fato, há ape<strong>na</strong>s <strong>loucura</strong>s — formas huma<strong>na</strong>s <strong>da</strong><br />

<strong>loucura</strong>: "Há tantas estátuas quanto homens" 73 ; basta <strong>da</strong>r uma<br />

olha<strong>da</strong> <strong>na</strong>s ci<strong>da</strong>des, mesmo as mais prudentes e as melhor<br />

gover<strong>na</strong><strong>da</strong>s:<br />

Tantas formas de <strong>loucura</strong> nelas abun<strong>da</strong>m, e são tantas e novas a <strong>na</strong>scer todo<br />

dia, que mil Demócritos não seriam suficientes para zombar delas 74 .<br />

A <strong>loucura</strong> só existe em ca<strong>da</strong> homem, porque é o homem que a<br />

constitui no apego que ele demonstra por si mesmo e através <strong>da</strong>s<br />

ilusões com que se alimenta. A Philautia é a primeira <strong>da</strong>s figuras que<br />

a Loucura arrasta para sua <strong>da</strong>nça, mas isto porque estão liga<strong>da</strong>s uma<br />

à outra por um parentesco privilegiado: o apego a si próprio é o<br />

primeiro si<strong>na</strong>l <strong>da</strong> <strong>loucura</strong>, mas é porque o homem se apega a si<br />

próprio que ele aceita o erro como ver<strong>da</strong>de, a mentira como sendo a<br />

reali<strong>da</strong>de, a violência e a feiúra como sendo a beleza e a justiça:<br />

Este aqui, mais feio que um macaco, vê-se tão belo quanto Niréia; aquele<br />

pensa ser Euclides por traçar três linhas com um compasso; aquele outro<br />

acredita cantar como Hermógenes, quando <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de é um asno diante de<br />

uma lira, sua voz soando tão em falso quanto a do galo que morde sua<br />

galinha 75 .<br />

Nesta adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir sua<br />

<strong>loucura</strong> como uma miragem. O símbolo <strong>da</strong> <strong>loucura</strong> será doravante<br />

este espelho que, <strong>na</strong><strong>da</strong> refletindo de real, refletiria secretamente,<br />

para aquele que nele se contempla, o sonho de sua presunção. A<br />

<strong>loucura</strong> não diz tanto respeito à ver<strong>da</strong>de e ao mundo quanto ao<br />

homem e à ver<strong>da</strong>de de si mesmo que ele acredita distinguir.<br />

Ela desemboca, portanto, num universo inteiramente moral. O<br />

Mal não é o castigo ou o fim dos tempos, mas ape<strong>na</strong>s erro e defeito.<br />

Cento e dezesseis dos cantos do poema de Brant desti<strong>na</strong>m-se a<br />

traçar o retrato dos insanos passageiros <strong>da</strong> Nau: são os avaros, os<br />

delatores, os bêbados. São os que se entregam à desordem e à<br />

devassidão; os que interpretam mal as Escrituras, os que praticam o<br />

adultério. Locher, o tradutor de Brant, indica em seu prefácio em<br />

latim o projeto e o sentido <strong>da</strong> obra; trata-se de mostrar quae mala,<br />

quae bo<strong>na</strong> sint; quid vitia; quo virtus, quo ferat error; e isto<br />

fustigando, conforme a mal<strong>da</strong>de que ca<strong>da</strong> um demonstrar, ímpios,<br />

73 ERASMO, loc. cit., § 47, p. 101.<br />

74 Idem, ibidem, § 48, p. 102<br />

75 Idem, ibidem, § 42, p. 89.<br />

30

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!