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Metodologia e Pré-História da África - unesdoc - Unesco

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A tradição viva<br />

simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual cuja violação lhes<br />

impossibilitaria o preenchimento de sua função.<br />

Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um “Mestre <strong>da</strong> faca”, e<br />

muito menos um Doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradicionalista-<br />

‑doma revelar -se um mentiroso, jamais voltaria a receber a confiança de alguém<br />

em qualquer domínio e sua função desapareceria imediatamente.<br />

De modo geral, a tradição africana abomina a mentira. Diz -se: “Cui<strong>da</strong> -te<br />

para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti<br />

do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdição ritual <strong>da</strong> mentira afeta, de<br />

modo particular, todos os “oficiantes” (ou sacrificadores ou mestres <strong>da</strong> faca, etc.) 4<br />

de todos os graus, a começar pelo pai de família que é o sacrificador ou o oficiante<br />

de sua família, passando pelo ferreiro, pelo tecelão ou pelo artesão tradicional –<br />

sendo a prática de um ofício uma ativi<strong>da</strong>de sagra<strong>da</strong>, como veremos adiante. A<br />

proibição atinge todos os que, tendo de exercer uma responsabili<strong>da</strong>de mágico-<br />

-religiosa e de realizar os atos rituais, são, de algum modo, os intermediários entre<br />

os mortais comuns e as forças tutelares; no topo estão o oficiante sagrado do país<br />

(por exemplo, o Hogon, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei.<br />

Essa interdição ritual existe, de meu conhecimento, em to<strong>da</strong>s as tradições<br />

<strong>da</strong> savana africana.<br />

A proibição <strong>da</strong> mentira deve -se ao fato de que se um oficiante mentisse,<br />

estaria corrompendo os atos rituais. Não mais preencheria o conjunto <strong>da</strong>s<br />

condições rituais necessárias à realização do ato sagrado, sendo a principal<br />

estar ele próprio em harmonia antes de manipular as forças <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Não nos<br />

esqueçamos de que todos os sistemas mágico -religiosos africanos tendem a<br />

preservar ou restabelecer o equilíbrio <strong>da</strong>s forças, do qual depende a harmonia<br />

do mundo material e espiritual.<br />

Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam -se a esta obrigação, pois,<br />

enquanto Mestres iniciados, são os grandes detentores <strong>da</strong> Palavra, principal agente<br />

ativo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e dos espíritos. São os herdeiros <strong>da</strong>s palavras sagra<strong>da</strong>s e<br />

encantatórias transmiti<strong>da</strong>s pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar<br />

às primeiras vibrações sagra<strong>da</strong>s emiti<strong>da</strong>s por Maa, o primeiro homem.<br />

Se o tradicionalista -doma é detentor <strong>da</strong> Palavra, os demais homens são os<br />

depositários do palavrório…<br />

Citarei o caso de um Mestre <strong>da</strong> faca dogon, do país de Pignari (departamento<br />

de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi forçado a mentir<br />

4 Nem to<strong>da</strong>s as cerimônias rituais incluíam necessariamente o sacrifício de um animal. O “sacrifício” podia<br />

consistir em uma oferen<strong>da</strong> de painço, leite ou algum outro produto natural.<br />

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