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o caso mateus ribeiro - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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Alívio de tristes e consolação de queixosos - Parte I 181<br />

ofendi<strong>do</strong> de minha própria esposa, a quem mais que a mim queria, a quem<br />

mais que a própria vi<strong>da</strong> amava, para não somente ficar ofendi<strong>do</strong>, mas abati<strong>do</strong> e<br />

afronta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> alvo de quantos olhos e discursos me conhecem, nem lhe<br />

acho consolação, nem lhe espero remédio. Do insigne escultor Praxiteles se<br />

conta que aman<strong>do</strong> com extremos grandes a Frine, fermosíssima <strong>da</strong>ma <strong>da</strong>quela<br />

i<strong>da</strong>de, lhe prometeu, importuna<strong>do</strong> de seus rogos, <strong>da</strong>r a mais perfeita e<br />

excelente imagem que em casa tivesse: ela, como discreta, queren<strong>do</strong> inteirar-<br />

se com indústria <strong>da</strong> imagem que ele tinha em maior estima, deu traça a que um<br />

escravo de Praxiteles, suborna<strong>do</strong> dela, viesse corren<strong>do</strong> e alvoroça<strong>do</strong> dizer ao<br />

senhor que repentinamente se lhe tinha atea<strong>do</strong> o fogo em sua casa e havia<br />

consumi<strong>do</strong> e desfeito a maior parte <strong>da</strong>s imagens que nela estavam; ao que<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong> ele crédito começou a correr perturba<strong>do</strong> e sem alento, dizen<strong>do</strong> que se o<br />

Cupi<strong>do</strong> e o Sátiro se perderam, não lhe ficava em tu<strong>do</strong> o mais cousa que de<br />

valor algum fosse. Então o deteve Frine, manifestan<strong>do</strong>-lhe a indústria, e assim<br />

alcançou dele Cupi<strong>do</strong>, que foi obra de rara admiração naqueles tempos. Tal<br />

ponderei eu com razão dizer que pois Teo<strong>do</strong>ra, a cousa que eu mais amava,<br />

não somente perdi, mais juntamente com ela a honra, pren<strong>da</strong> <strong>da</strong> maior estima;<br />

não me fica cousa alguma que possa nem desejar, nem pertender,<br />

desestiman<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> a mesma vi<strong>da</strong>, que sempre a um desgosto fica sen<strong>do</strong> mais<br />

dilata<strong>da</strong> <strong>do</strong> que a deseja.<br />

Apenas tive notícia <strong>do</strong> trágico sucesso, ven<strong>do</strong>-me em um instante,<br />

quan<strong>do</strong> menos o temia, tão cerca<strong>do</strong> de penas e sentimentos, quan<strong>do</strong> leva<strong>do</strong> de<br />

desejos de vingança fui em seguimento de quem tão mereci<strong>do</strong> me tinha o<br />

castigo, suposto que por mais que o amor tratava de transformar-se em ódio,<br />

contu<strong>do</strong> sempre <strong>da</strong>va indícios de haver si<strong>do</strong> amor; que quem deveras ama,<br />

com dificul<strong>da</strong>de os aborrece. Tempo há mister o corvo quan<strong>do</strong> nasce para tingir<br />

a candura <strong>da</strong>s penas com que no tosco berço de seu ninho o enfaixou a<br />

natureza: artifícios e discurso de tempo são necessários para que a cera que<br />

<strong>do</strong> favo páli<strong>do</strong> sai converta a desmaia<strong>da</strong> cor na semelhança <strong>da</strong> neve em que a<br />

vemos; não repentinamente, mas com vagares, o orvalho que bebeu a concha<br />

se reconverte em perla, o azougue em ouro. Com demoras se mu<strong>da</strong> o Estio em<br />

Inverno, o agro em <strong>do</strong>ce com espaço de dias se transforma, e se nas cousas<br />

materiais requer tempo a mu<strong>da</strong>nça, não deixarei de admirar-me de que possa<br />

em um instante em furor converter-se, em ódio trocar-se, um ver<strong>da</strong>deiro amor,

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