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UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA FACULDADE ...

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Diante dos comandos de meu orientador, na minha condição de imigrante galego<br />

sob a contínua influência da cultura brasileira nos sertões do hinterland goiano, uma das<br />

perguntas preliminares que cri ter que começar a me formular foi a de qual era exatamente<br />

muitas pesquisas sobre a natureza e os reflexos da cordialidade nos campos sociais do Brasil. Isso foi possível<br />

pela imprecisão, e pela conseguinte ambigüidade e confusão, da exposição de Buarque de Holanda, apesar de<br />

ele asseverar que a cordialidade era um “traço definido” inerente ao brasileiro. A conveniência dessa<br />

qualificação foi discutida por Cassiano Ricardo em O homem cordial (1959). Cassiano Ricardo (1959: 7)<br />

frisou o seguinte: “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha por um lado, a todo formalismo<br />

e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de<br />

concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração,<br />

procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. O principal problema na identificação, feita<br />

por Buarque de Holanda, do sujeito brasileiro como um homem cordial residia, segundo Cassiano Ricardo, na<br />

ausência de concretização de uma acepção nítida para o qualificativo “cordial”. Além disso, o modernista<br />

salientou que não se podia assinalar um povo que carecesse de cordialidade, sendo, pois, a cordialidade um<br />

fenômeno universal inerente à natureza humana. Cassiano Ricardo julgou contraditória a enunciação de que o<br />

brasileiro era cordial, mas não polido, e denunciou a artificialidade do recurso, à etimologia, de Buarque de<br />

Holanda na segunda edição de Raízes do Brasil (o brasileiro é um “homem de coração”), mediante o qual esse<br />

autor se amparava nos impulsos e sentimentos, tanto de amizade quanto de inimizade, surgidos no coração,<br />

para esclarecer em que consistia a cordialidade brasileira. Nesse sentido, o modernista opinava que Buarque<br />

de Holanda deveria ter escolhido o vocábulo simpático, caso ele quisesse indicar que o brasileiro gostava de<br />

mostrar envolvimento com os seus interlocutores, embora não o manifestasse por meio da polidez, e apesar de<br />

que esse envolvimento não derivava necessariamente em apoio ou auxílio. Cassiano Ricardo acreditava que o<br />

brasileiro típico era representado, na sua conduta, pela técnica da bondade – pela benevolência –, mas matizou<br />

que esta não se manifestava através de fórmulas de cordialidade, já que ela era envolvente, política e<br />

assimiladora, e propôs a seguinte síntese sobre os traços distintivos do brasileiro: “a) Que estamos elaborando<br />

uma civilização de fundo mais emotivo que a dos outros povos, – não há dúvida; b) Que o brasileiro se deixa<br />

levar, ou consegue vencer, mais pelo coração do que pela cabeça, é coisa que me parece incontestável; c) Que<br />

somos muito mais propensos a ideologias do que a idéias, – quem o negará? d) Que detestamos a violência<br />

porque o nosso estilo de vida é o da mansidão social, – certíssimo; e) Que até na intimidade e mesmo na<br />

hostilidade o brasileiro é ‘menos cruel’ que os outros povos – muito bem. Menos odioso – nada mais<br />

verdadeiro; f) Que a história nos demonstra que esse ‘menos cruel’, como acontece na própria conquista da<br />

terra – é ponto pacífico; g) Que a bondade (ao invés da cordialidade) é a nossa contribuição ao mundo, – é<br />

uma verdade que a observação dos fatos confirma plenamente; h) Que o brasileiro (quando mais polido) sabe<br />

tirar partido da própria bondade, e que esse seu ricorso se poderia chamar ‘técnica da bondade’ – é tese que<br />

me pareceu não só procedente como original; i) Que essa bondade, no plano social e político, é o primeiro<br />

fundamento de nossa democracia social – sempre me pareceu certo; j) Que somos individualistas mas que o<br />

nosso individualismo encontra, em grande parte, o seu corretivo natural na bondade específica do brasileiro –<br />

nada mais justo; k) Mas que ‘cordialidade’ seja, no sentido em que tomamos e praticamos essa palavra<br />

(polidez), a nossa contribuição ao mundo, não se me afigura aceitável nem cabível” (Ricardo, 1959: 22).<br />

Segundo Cassiano Ricardo, a “bondade brasileira” teria começado a se conformar, como técnica para os<br />

relacionamentos sociais, com a descoberta, devido ao convívio paternal com os ingênuos aborígenes e à<br />

influência da natureza, e ter-se-ia transmitido pela educação familiar. Para o modernista, no Brasil<br />

consolidara-se a felicidade social e resolviam-se, pela mediação e pela conciliação, os conflitos, de modo que<br />

não cabiam as “violências, ditaduras e quejandas invenções da força” (Ricardo, 1959: 36) no clima moral<br />

brasileiro, caracterizado pela democracia racial e pela vocação para a fraternidade. Ora, a argumentação de<br />

Cassiano Ricardo carece também de suficiência estrutural. Ao igual que Buarque de Holanda, ele<br />

fundamentou a sua visão nos juízos de viajantes estrangeiros e na sua própria experiência de vida. Além do<br />

mais, a discordância de Ricardo com Holanda ficou reduzida, por um lado, ao vocábulo que devia ser<br />

assumido – “bondade” frente a “cordialidade” – para enfatizar a principal propriedade da identidade brasileira<br />

e, por outro, à retórica da justificativa da escolha. Contudo, ambos os autores coincidiram ao assinalarem que<br />

o brasileiro era afável, embora não aprofundasse nas relações sociais, e que a simpatia fazia parte de uma<br />

estratégia de convívio que podia visar, como finalidade principal, tirar vantagem de quem recebia essa<br />

simpatia.<br />

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