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UNIVERSIDADE DE SANTIAGO DE COMPOSTELA FACULDADE ...

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são atenuadas pelo mal-estar da ausência. Kristeva (1994: 13) deduz que o estrangeiro é<br />

aquele que perdeu a mãe, hiper-dimensionada, mas ineficaz, protetora, mas asfixiante 126 .<br />

O estrangeiro consegue combater por meio da indiferença a angústia que lhe<br />

provoca a ausência e o desarraigo. Essa indiferença – um existir anestesiado – manifesta-se<br />

tanto como um desligamento com a existência no antes e no alhures – a pátria e a mãe –<br />

quanto como uma displicência no tocante aos laços sociais no país receptor e como uma<br />

distância interior em relação a ele mesmo no agora e no aqui. O estrangeiro não teve um<br />

pai com poder e autoridade para detê-lo na sua fuga; tem, porém, uma mãe presente, antes e<br />

durante a sua ausência, mas ela está demasiado distraída e não pode entender a agonia do<br />

filho. Essa mãe é muito preocupada pela circunstância em que ela vive, da qual faz parte<br />

seu filho, e assume, desnecessariamente, responsabilidades familiares que extrapolam e<br />

distorcem as suas funções como mãe, chegando o filho a acreditar que a sua desaparição<br />

física do entorno da mãe e o início de uma vida errática podem servir para aliviar os atritos<br />

pelos quais ela passa procurando harmonizar o núcleo familiar. Ao respeito, diz Kristeva:<br />

No ponto mais longínquo em que sua memória remonta, ela está deliciosamente magoada:<br />

incompreendido por uma mãe amada e contudo distraída, discreta e preocupada, o exilado é estranho<br />

à própria mãe. Ele não a chama, nada lhe pede. Orgulhoso, agarra-se ao que lhe falta, à ausência, a<br />

qualquer símbolo. O estrangeiro seria o filho de um pai cuja existência não deixa dúvida alguma,<br />

mas cuja presença não o detém. A rejeição de um lado, o inacessível do outro: se tiver forças para<br />

126 Julia Kristeva (1994) reflete acerca da significação simbólica distintiva que pode ter, em um estrangeiro, a<br />

assunção da perda da mãe. A autora exemplifica essa reflexão no personagem Mersault, do romance O<br />

estrangeiro, de Albert Camus. Desse personagem ela destaca a atitude fria com a qual ele reagiu perante a<br />

morte de sua mãe; Kristeza acredita que o desarraigamento conduz o estrangeiro à apatia a respeito da sua<br />

pátria e, logo, ao distanciamento psíquico e à renúncia da sua família. O protagonista Mersault, solitário, e<br />

ausente da circunstância que o rodeava, compreende antes da sua execução, que a sua morte completaria o seu<br />

processo vital de auto-anulação, do qual tentara se distrair mediante paixões e exaltações. Mersault percebe,<br />

na auto-avaliação que faz em uma cela durante a noite prévia ao seu justiçamento, que a morte não era mais<br />

que a culminação da sua indiferença em relação a tudo o que o rodeava e, inclusive, em relação a si mesmo:<br />

“En cuanto salió, recuperé la calma. Me sentía agotado y me arrojé sobre el camastro. Creo que dormí porque<br />

me desperté con las estrellas sobre el rostro. Los ruidos del campo subían hasta mí. Olores a noche, a tierra y<br />

a sal me refrescaban las sienes. La maravillosa paz de este verano adormecido penetraba en mí como una<br />

marea. En ese momento y en el límite de la noche, aullaron las sirenas. Anunciaban partidas hacia un mundo<br />

que ahora me era para siempre indiferente. Por primera vez desde hacía mucho tiempo pensé en mamá. Me<br />

pareció que comprendía por qué, al final de su vida, había tenido un ‘novio’, por qué había jugado a comenzar<br />

otra vez. Allá, allá también, en torno de ese asilo en el que las vidas se extinguían, la noche era como una<br />

tregua melancólica. Tan cerca de la muerte, mamá debía de sentirse allí liberada y pronta para revivir todo.<br />

Nadie, nadie tenía derecho de llorar por ella. Y yo también me sentía pronto a revivir todo. Como si esta<br />

tremenda cólera me hubiese purgado del mal, vaciado de esperanza, delante de esta noche cargada de<br />

presagios y de estrellas, me abría por primera vez a la tierna indiferencia del mundo. Al encontrarlo tan<br />

semejante a mí, tan fraternal, en fin, comprendía que había sido feliz y que lo era todavía. Para que todo sea<br />

consumado, para que me sienta menos solo, me quedaba esperar que el día de mi ejecución haya muchos<br />

espectadores y que me reciban con gritos de odio” (Camus, 2004: 156-57).<br />

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